Era dia 10 de outubro de 1980 quando as escadarias em frente ao Teatro Municipal de São Paulo foram ocupadas por mulheres em protesto contra o aumento dos crimes de gênero em todo o país. Elas denunciavam o alto índice de agressões contra a população feminina e pretendiam, além de provocar a reflexão, chamar a atenção para as práticas criminosas a que as mulheres estavam submetidas. Neste dia, criaram o Dia Nacional da Luta Contra a Violência à Mulher.

Não esqueçamos que antes desta década mulheres já vinham denunciando violências, mas eram vozes isoladas e não compreendidas já que a cultura patriarcal as desconsiderava, silenciava e as repelia. A década de 1980 iniciou em profunda crise econômica gerada na ditadura militar, inflação nas alturas, crise social e os rumos eram incertos. Apesar de vista por economistas como a “década perdida”, foi neste contexto de abertura política que se formaram muitos coletivos, entidades, partidos populares os quais frutificaram em imensas mobilizações sociais que culminaram nas propostas à constituinte, inseridas na Constituição de 1988.

Nestas mobilizações, as mulheres criaram condições para proposições inseridas no texto constitucional e era o Feminismo já atuando. Nesta década foram criadas as primeiras ONGs dos movimentos feministas, seguidas, nas décadas de lutas, sempre árduas, na aprovação de Leis importantes para a proteção, direitos e participação das mulheres, as quais são conhecidas e mudaram a forma de tratar as violências, a exemplo da Lei do Feminicídio e Maria da Penha.

Mas as lutas feministas não são fáceis e nem suas conquistas imunes de retrocessos.  O que chamaram de “escola sem partido” é um projeto explícito de eliminar os direitos das mulheres e minar as lutas e pautas feministas. Os golpes políticos, como golpe misógino contra Dilma Rousseff, mostram os poderes ardilosos contra a democracia e tudo o que dela advém. As mulheres, as pessoas pobres, as pessoas negras, os povos originários sofrem.

Acompanhamos diariamente notícias de violências contra mulheres e crianças. Vemos isto nos dados consultados das Secretarias de Segurança Pública e do Observatório da Violência contra a Mulher: só no ano de 2021, no Brasil, aconteceram 1.319 feminicídios; 68 mil denúncias de violência doméstica; 33.850 pedidos de medidas protetivas; 56.098 casos de estupro, 61% desse número envolvendo meninas de até 14 anos;  um estupro coletivo a cada duas horas; 320 pessoas LGBTQI+ foram assassinadas; 17.300 meninas vulneráveis até 14 anos foram mães; foram realizados em torno de 500 mil abortos clandestinos.

Os números assustam, e mesmo assim são subnotificados. Estima-se, por exemplo, que somente 10% dos estupros sejam denunciados. São crimes de gênero, como denunciavam aquelas mulheres há 42 anos.

E, diariamente, temos imagens de masculinidades se exacerbando na toxidez de garantir-se pelo falo que tem, a arma que empunha, a fortuna financeira que possui, a moto com a qual desfila, as tatuagens de demônios à mostra, o os gestos impetuosos e o machismo nas palavras e atos. O projeto político é machista, misógino, violento, racista, homotransfóbico e aporofóbico.

Mas a ex-ministra (futura senadora) Damares mostra sua insensibilidade ao usar imagens de violências como exemplos para provocar o pânico moral – o que esperar de uma futura senadora que expõe deliberadamente violências sexuais para assustar fiéis e cooptar votos? Que diz ter visto crianças recebendo maus tratos sexuais de forma ultrajante? Se viu, por que nada fez? Ou é mentira?  Se mente, que moral tem para assumir um cargo público? Se não mente, é criminosa por omissão? A ex-ministra aproveita-se de informações privilegiadas pelo cargo que ocupava para provocar o pavor e estimular o medo, uma forma de abuso de poder e, pasmem, sem provas. É lamentável e digno de repúdio.

Preocupada em eliminar dos currículos escolares os temas para o enfrentamento às violências sexuais e de gênero, segue as bases fascistas que seu chefe apregoa. As frases ditas enquanto ministra mostram seu completo desdém para com as mulheres e crianças: “O governo federal irá ensinar meninos a dar flores e abrir a porta do carro a mulheres”. “Menino veste azul e menina veste rosa”. “Acabou a doutrinação de crianças e adolescentes”. “A mulher não sofre violência só dentro de casa, sofre no ônibus no metrô”. “A mulher, no casamento, deve ser submissa ao homem”. “Mas o homem mata com dentes, com mão, com pau. A violência contra a mulher se configura de diversas formas” (defesa do armamento). “O aborto é assunto do Parlamento e agora, do Judiciário”. “Criar uma sala rosa no IML por mulheres vítimas de violência”. “Culpa delas, das meninas, que andam sem calcinhas e são estupradas”.

Ela desconhece as estatísticas, a realidade, o cotidiano das mulheres e meninas. Às afirmações mentirosas e criminosas, deverá responder às instituições democráticas do país, e todo apoio aos juristas em seus pedidos de explicação ao STF e à PGR.

Ignora a importância da educação como projeto emancipador. Seu entorno não lhe diz respeito. Corrobora a educação que perpetua as naturalizações: aos meninos, futuros homens, a masculinidade e a virilidade tóxica, como se deles fosse o direito de usar os corpos das mulheres e meninas (e também de meninos) com propriedade sua e de seu domínio. Uma educação machista que perpetua um comportamento que compreende os homens como superiores às mulheres, com direito ao uso da força, de armas, da virilidade como se fosse sua natureza naturalmente violenta.

Mas, ninguém nasce machista, nem racista, fascista, homotransfóbico, gerontofóbico, misógino: é na educação que estas práticas são aprendidas, ensinadas, reproduzidas e construídas. Isso faz mal, tanto para as mulheres quanto para os homens. Eles gostariam de ser assim, violentos? Aposto que não, prefeririam viver em paz e harmonia, sem violentar e violentarem-se. Prefeririam trocar armas por livros, por certo.

Então, o gênero como uma categoria de análise que localiza as origens das violências para construir políticas públicas e eliminá-las, pressupõe um ensino para o respeito às diversidades em relações de paz. Pelo que temos presenciado, não é este o projeto da (des)ex-ministra.

Promover mudanças que rompam com os padrões culturais e as violências de gênero só é possível através de uma educação que emancipe as meninas e as possibilite fazer suas escolhas, e desintoxique os meninos de conceitos e práticas naturalizantes e violentas.

Quando ouvir que existe “ideologia de gênero”, pense, reflita. A categoria gênero, assim como o Feminismo, trazem propostas generosas de uma educação pautada na humanidade, na harmonia, promovem a dignidade. A violência contra as mulheres é a ausência de paz.

Marlene de Fáveri, 16 de outubro de 2022. Florianópolis.

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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