Feminismo nosso de cada dia (18) – “Quando a senhora for estuprada”
Domingo, cinco de dezembro de dois mil e vinte e um. Faz algumas semanas que não escrevo nesta coluna, por absoluta falta de tempo devida aos cuidados dedicados à minha mãe e por estar finalizando um livro poético coletivo. Em um mês acontecem muitas coisas…
A pandemia não sumiu: urgem cuidados e cuidados. O mundo não está a salvo desta(s) peste(s) nem de suas variantes mais potentes. Quanto ao nosso país, triste cenário de 615 mil óbitos, tão triste e envergonhante quanto o desgoverno mórbido e sem noção do que faz e diz.
Retrocedemos aos medievais tempos e, em alguns quesitos, para a idade da pedra. Nocivos mandantes terão o cárcere dos infernos. O fascismo é uma peçonha maldita que hiberna nas artérias do capitalismo e dá o bote sempre que a democracia se fragiliza.
A sociedade apodreceu, ou será parte dos homens – e de algumas mulheres por mais absurdo que pareça – que estão apodrecendo por dentro? Não passa um dia sem que tenhamos notícias de violências hediondas contra mulheres e crianças, fora as que não chegam às mídias.
Como combater estes crimes se dentro do próprio governo são repetidos mantras ideológicos que reproduzem masculinidades violentas? Como combater tudo isso se o governo que aparece armado, incita a violência, é misógino, machista, homofóbico e racista?
Estes vícios do machismo são reproduzidos em série. Era 17 de novembro último quando um professor, numa aula prática de intubação em uma universidade privada em Belém, questionou a aluna se ela havia passado lubrificante no material antes de ensinar o procedimento.
Diante da negativa da aluna, o professor médico então perguntou: “Quando a senhora for estuprada, quero ver se a senhora vai levar o vidrinho de lubrificante para facilitar a vida, ou vai preferir no seco mesmo?”. O infame professor, um típico ‘cidadão de bem’ da classe burguesa, foi visto posando com a faixa “Deus acima de tudo”. Que Deus é o dele? É repugnante.
Felizmente existem leis – construídas a marteladas pelas mulheres num legislativo de homens – que possibilitam a denúncia. O episódio nefasto está em investigação na Divisão Especializada do Atendimento à Mulher, e o Conselho Regional de Medicina do Pará que instaurou procedimento administrativo e procede investigação policial via Ministério Público. Como consequência, o docente foi demitido da cátedra na Universidade/Unifaz.
Pergunto-me o que leva um professor a referir-se desta forma a uma aluna no ambiente escolar? Que conteúdos faltaram na formação deste médico? Ou seria a profunda e enraizada ideia de que as mulheres podem, ou merecem, ser estupradas?
O machismo está nas estruturas, isto é, desde sempre os homens se sentem donos dos corpos das mulheres e reproduzem naturalizações nas relações cotidianas, como se o sexo delas pertencesse a eles. O próprio (des)presidente, quando deputado em 2014, disse à deputada Maria do Rosário que não a estupraria “porque ela não merece”.
O estupro, ou a incitação a ele, como a importunação sexual e o assédio, tem sido lugar comum nas relações de poder. Neste caso, o professor não se constrange em afirmar “quando a senhora for estuprada” como se fosse destino de todas as mulheres passar por esta violência. E prossegue a aula, tranquilamente.
Diria ele a mesma frase se fosse um aluno homem a dar-lhe a mesma resposta? Não desconsidero que alunos/homens passem por situações de assédios e mesmo estupros: em torno de 15% das vítimas de estupro no Brasil são meninos/homens.
Todavia, a frase foi dita para uma mulher, uma aluna, no local de trabalho do professor. Ele está na situação de superioridade hierárquica e constrange a aluna, bem como os outros alunos e alunas que assistiam à aula. Ele a objetifica perante uma turma. E se fosse sem testemunhas e não houvesse registro? Por certo seria a palavra dele contra a dela, e certamente prevaleceria a dele.
Na contemporaneidade, o uso das ferramentas digitais tem oportunizado visibilizar o que acontece nas franjas do cotidiano, mas estas violências sempre aconteceram entre silêncios e dores. As leis, e a possibilidade de uso das mídias digitais, oportunizam denúncias, todavia ainda há permanências de silenciamentos e medo.
No Brasil, a cada 8 minutos acontece um caso de estupro (dados subnotificados, é evidente), e 85% das vítimas são mulheres, revelando a objetificação e exploração de seus corpos. Mudaram práticas jurídicas, mas não as formas de abusos, assédios e violências sexuais. Recentemente, Mariana Ferrer sofreu estupro e a denúncia mostrava provas contundentes.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) absolveu, por unanimidade, o empresário André Aranha da acusação de ter estuprado a influenciadora Mariana Ferrer. Quem é ele? Um homem branco, rico, abonado. Patriarcado e machismo são estruturas cristalizadas que andam de mãos dadas na sociedade, infelizmente.
Um professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) criava situações de intimidade de cunho sexual, contato físico e constrangimento com alunas por mais de uma década, aproveitando-se de sua condição hierárquica. Estuprou uma delas e as outras encorajaram-se e o denunciaram. Qual a sentença? Alguns meses de prisão, substituídos por prestação de serviços à comunidade. Isso é pena máxima?
Estruturas hierarquizam à medida em que naturalizam o poder de homens sobre mulheres, de professores sobre alunas e de coordenadores sobre bolsistas nos ambientes universitários. O mesmo acontece em outros ambientes escolares. São dinâmicas permissivas que promovem a cultura da violência e da culpabilidade das mulheres. Quando um professor diz a uma aluna que ela será, necessariamente, estuprada, o que pensar?
Uma mulher que sofre estupro não é só uma mulher que foi violada: será uma mulher a carregar um fardo de dor, medo, angústia, solidão que muitas vezes destroem sua vida. Será um corpo que sangra por dentro.
“Agradeço às mulheres que falaram sobre o tema e me deram força para revisitar esse momento triste do meu passado”. Lupita Nyong’o
Marlene de Fáveri, 5 de dezembro de 2021. Florianópolis.