Domingo, quatro de julho de dois mil e vinte e um. Voltei para Turvo há duas semanas, sob uma friaca daquelas que entumesce o nariz e o faz da cor de um pimentão maduro. Desde que saí de casa da mãe para estudar eu não havia ficado tanto tempo com ela e encarando um frio como o que faz agora. Dias chuvosos enfileiraram-se um após outro. Esparsos raios de sol logo escondiam-se entre nuvens densas e pesadas que, de repente, soltavam pingos apressados sobre plantas, terra, flores e fauna. São chuvas providenciais, pois presenteiam vida a tudo o que viceja sobre o solo. A horta está verdejante, as plantas brotam e crescem que dá gosto de ver!

Foto: arquivo pessoal

Agasalhei minha mãe muitas vezes nestas duas semanas para que ela se sentisse bem quentinha.  Nas noites friorentas providenciei bolsas de água quente para aquecer seus pés, cuidei para que ficasse bem coberta. Sorte que temos uma casa onde é possível nos proteger da ventania cortante e gélida, que temos muitos cobertores de tipos, tamanho, peso e cores diferentes, que podemos fazer uma sopa gostosa e apetitosa, temos água bem quente para os banhos, pantufas e pijamas fofinhos. Sorte que temos uma à outra, mãezinha!

Noutros tempos não tínhamos estes confortos. Quando menina, aos sete anos, passei a frequentar a escola multisseriada em Vila Maria, Nova Veneza, no sul profundo de Santa Catarina. Eu e meus irmãos saíamos de casa muito cedo, ainda escuro naqueles invernos, e andávamos seis quilômetros até a escola. Não tínhamos calçados e no caminho de pedras e terra, branco de geada, deixávamos nossas pegadas de pés congelados. Usávamos uniforme costurado por minha mãe e um casaco de pelúcia. A gente acostuma com o frio ardente na pele.

No segundo ano de escola, ganhei de minha tia Maria uma blusa de tricô feita de fios de lã e que não servia mais em sua filha. Era cor de rosa, e eu a usava com cuidado para durar mais. Usei aquela blusa até deixar de me servir e passei para minha irmã menor.

Lembro de minha mãe acordando antes do nascer do sol, ou com chuva, nos invernos de cerração fechada, para ordenhar as vacas e tratar dos afazeres da rua. Ela ia, descalça, até voltar com um balde de leite e alguns ovos para nosso desjejum antes da escola. A água gelava as mãos e mesmo assim ela lavava roupas num cocho debaixo de um pé de bergamotas.

Não tínhamos eletricidade em casa e, por conseguinte, nossos banhos eram de bacia e caneca d’água, fosse o frio que fosse. Lembro de quando mudamos para Turvo, eu tinha nove anos, minha mãe juntou as economias e fez construir um banheiro ao lado de fora da casa. Ah, disputávamos o banho quente num chuveiro de água rala, sob o aviso da mãe para que nos apressássemos, e não saíssemos de lá sem nos vestirmos para não pegar friagem no caminho entre o banheiro e a casa.

Em Turvo, minha mãe se desdobrou no plantio de hortaliças, batatas, aipim, frutas, criação de galinhas, além de lavar roupas para um restaurante. Depois de algum tempo ela soube de um concurso público para servidora de serviços gerais numa escola estadual. Como ela só tinha o curso primário incompleto, lamentou que talvez não adiantaria concorrer, mas arriscou – autodidata, lia o que tinha em mãos – e foi aprovada! Era o ano de 1974. Eu já cursava o ginásio e no contraturno cuidava da casa e dos irmãos menores.

Foi quando pudemos ter os primeiros casacos e calçados. Recordo que ia para a escola de uniforme, que era uma saia azul pregueada e blusa branca. Demorou para que as escolas aceitassem que as meninas pudessem usar calças compridas, que se chamavam eslaques, e não mais só saias como uniforme escolar. Os tempos iam mudando.

Minha mãe costurou minha primeira calça comprida, larga, vermelho-escura com listras pretas. Eu tinha treze anos. Sempre que vem o inverno essas memórias atravessam-me nos dias friorentos, e lembro de quando prover a vida e nos aquecer, os seus seis filhos, alimentar e dar estudo era difícil, mas minha mãe se esmerou para nos dar todos os confortos possíveis.

Foto: arquivo pessoal

Hoje, ao cobrir minha mãe à noite, ela perguntou: “Que cobertor é esse, assim felpudo, que não me lembro?” Respirei fundo e lembrei-a que eu trouxe para ela faz tempo para que não sentisse nenhum frio. “Ah, é mesmo! Tinha esquecido!”. Hoje ela tem meias, blusas, calças de lã, pantufas, gorros que eu ia trazendo na medida em que fui alcançando melhores salários. Dei-me conta de que sempre me preocupei mais com ela do que comigo. Por exemplo, nas viagens que fiz, sempre lhe comprei presentes úteis e, dentre estes, roupas de inverno. Não, mãezinha, nunca mais passaremos frio.

Desde que saí de casa para estudar, tinha ganas de proteger as mulheres e, sobretudo, ajudar minha mãe – eu consegui um lugar que me possibilita proporcionar os cuidados que ela merece. E consegui porque vivi num tempo em que os governos democráticos favoreceram as oportunidades. E há quem desconte suas iras sobre esses governos para apoiar uma casta infame que hoje vende nossos sonhos.

As mulheres se preocupam com as coisas do cotidiano mais ordinário, e mais ainda quando passaram por experiências que as marcaram como driblar os invernos implacáveis e ter que lidar com as necessidades.  As estratégias e táticas fazem parte da vida cotidiana das mulheres que sentiram na pele as dificuldades, e não se amuaram.

“Marlene, olha, vão aumentar de novo a conta da luz, miserere!”, disse a mãe ao ouvir uma notícia de que haverá novo aumento significativo na conta da energia elétrica. “Meu Deus, como vai ser para tanta gente, com o aumento da gasolina e agora da energia?” Ela sempre se preocupa com o sofrimento das pessoas, e sei que é sua história a remexer seus sentimentos. Então falamos das trabalhadoras que dependem de energia elétrica para sobreviver, como cabeleireiras, padeiras, eletricistas, costureiras, passadeiras, dentre outros serviços.

Com o aumento da tarifa – foi anunciada bandeira vermelha em parte do Brasil neste mês – quem sofre mais?  Não são as grandes empresas que detêm o capital e os meios de produção, por certo. Sofrem sobremaneira as mulheres que têm que dar conta de prover conforto às suas famílias com trabalho informal como costurar e passar, por exemplo.

Somada à pandemia e seus estragos e dores – são 525 mil óbitos – o desgoverno e sua aposta na economia de mercado voltada para os grandes empresários levaram 5,4 milhões de brasileiros à carência extrema. A privatização da Eletrobrás é uma das maldades na abominável negociata entre poderes e poderosos, dificultam do o acesso a um bem que deveria ser acessível aos menos favorecidos. Sabem eles o tamanho da responsabilidade? Claro que não! Para essa classe favorecida pessoas são só corpos descartáveis – é a necropolítica, prática de quem detém os benefícios do poder, como o perdão das dívidas de impostos e com recursos vantajosos, muitas vezes vindos de propinas.

Sim, mãezinha, estamos num barco à deriva porque tanta gente acreditou em promessas avessas de um sem caráter. Quem diria que chegaríamos mais de meio milhão de mortes pela inépcia desses nacionalicidas? Que a gasolina chegaria a cinco reais o litro? Que tanta gente voltaria a passar fome e frio e dor e sofrimento com a desesperança? Que os alimentos seriam produzidos em abundância com lucros exorbitantes – o agro é pop? – enquanto tanta gente sofreria com a tanta fome infame? Que um dólar por vacina – pasmem – seria a medida entre a vida e a morte? Que medo e frio e desemprego e mortes e abandonos e misérias seriam realidade depois de  governos democráticos que pensaram nas pessoas como seres com direitos humanos?

Em 2011, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu prêmio destinado a personalidades de importante contribuição para o combate à fome no mundo.  É dos direitos sociais que os poderosos têm medo. E temem as mulheres exacerbando seus machismos.

Estamos resistindo sem perder a esperança, porque a vida não tem preço e o bem prevalecerá. Avante, companheiras e companheiros de lutas!

Eles vão desmontando as empresas estatais, vão privatizando tudo a preço de banana, vão fazendo a reforma administrativa para prejudicar o trabalhador menor”.

Luiz Inácio Lula da Silva

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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