Quando menina, eu amarrava meus cabelos bem apertados numa trança na tentativa de que não enrolassem ou encrespassem. Meus primos do litoral me apelidaram de “corda de bolsa” porque, ao final do dia, a trança já estava toda esgarçada e grossa feito as cordas que amarravam as balsas no porto. Quando eu estava com a parte da minha família que era preta, me sentia branca.

Quando eu estava com minha família branca, me sentia preta, e quando estava perto do menino que eu gostava, também.

Sentávamos em dupla na sala de aula. Eu tinha mudado para aquela escola há pouco tempo e a professora me colocou com ele. Branco, loiro, rico. Eu estava longe de ser o padrão de beleza, mas desde o começo sabia que a sedução é uma arte abstrata – e eu sempre fui boa em artes. Foi meu primeiro beijo. Fomos na praça e, para dar espaço, os amiguinhos caminharam na frente. 

Quando nos beijamos senti uma sensação de desmaio e caí sobre ele, que me segurou num abraço. Preciosa janela que se abre entre o primeiro amor e a primeira decepção, em que sentimos que não há qualquer risco em cair de cabeça nos sentimentos. Ali, começamos nosso namorinho.

Alguns dias depois eu passeava com minha cachorra Mila, quando ouvi alguém chamar. Era ele, acenando do alto do segundo andar de sua escola particular de inglês. Senti vergonha da minha roupa velha, do meu sapato barato, da minha cachorra vira-lata. Me desculpe, Mila, por não conseguir nos honrar naquela época. 

Hoje, uma página não seria suficiente para descrever suas virtudes. Mila passeava sem coleira, atravessava a rua apenas ao nosso comando e, chegando na loja ou supermercado de destino, sentava-se ao lado da porta aguardando nosso retorno. Nunca foi treinada. O namoro durou uma semana. A professora trocou as duplas da sala e outra menina se sentou ao lado dele. 

Rapidamente, percebi a aproximação dos dois e o risco que eu corria. Sempre fui orgulhosa e, mesmo morrendo de amores, terminei. Depois disso, seu amigo veio me contar o que ele uma vez disse: “Ela é bonita, o que estraga é o cabelo”.

Minha relação com o cabelo seguiu turbulenta.

No ensino médio, fiz relaxamento para tirar o volume e abandonei a trança pelos bobs. “Cacheado ok, armado nunca!”. Passava a noite com eles na cabeça, mesmo sendo muito desconfortável para dormir.

Aos 19, entrei em uma faculdade pública. O curso era Ecologia. Fui parar em um habitat propício no meio de bichos grilos que valorizavam a beleza para além do padrão e pude resetar minha autoestima. 

A validação externa, ainda mais quando se trata de aparência, não é um destino consistente para a autoestima de uma mulher. Mas, para mim, naquele momento, foi como uma ponte, uma ajuda para que eu própria chegasse em motivos melhores para me valorizar.

A vida seguiu e, já formada, depois de muitos anos sem ver ou falar com o menino loiro, trocamos mensagens pelo instagram. Ele estava recém separado. Combinamos de nos encontrar e quando ele chegou, eu ainda estava me arrumando. Conversávamos enquanto eu secava meus cabelos no secador para que ficassem bem armados. 

Sua presença me avivou a memória da menina que fui e do longo caminho que percorri segurando nas mãos dela até chegar ali. No meu íntimo, eu desfrutava de como era gostoso ser eu, ter minha história, minha família, aprender o que aprendi e me enxergar através de mim e não dele. Claro, não disse nada para não correr o risco de atrapalhar minha experiência ouvindo comentários de alguém que nunca poderia entender o aquilo significava. 

Também porque não o queria como cúmplice, mas como instrumento.

Foi bom dar a oportunidade para meu corpo comprovar que ele não me intimidava mais e registrar uma nova memória sobre aquele passado.

Tivemos apenas um encontro e foi suficiente.

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  • Bárbara Li Sarti

    Autora do livro Relatos Não Mono, disponível na Amazon, escreve sobre não monogamia no Instagram @barbarali.zabele

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