Durante muitos anos o mundo do futebol foi considerado um ambiente exclusivamente masculino e de expressão da masculinidade. Esse domínio dos homens sobre o esporte se deve a padrões machistas, que impuseram a ideia de que certas funções, espaços e posições de poder não contemplam as mulheres. O texto da Constituição de 1988, na intenção de mitigar disparidades como essa, trouxe explicitamente em seu art. 5º, a igualdade em direitos e obrigações entre homens e mulheres. Mas nem sempre a letra da lei basta para a concretização do que está escrito, na verdade, quase nunca.

No exemplo da vez, temos sob os holofotes um caso ocorrido em 1987, que resultou na condenação de quatro jogadores brasileiros por crime sexual contra uma menina de 13 anos, durante viagem à Suíça.

Caso esse que ilustra como a sociedade enxergava e ainda enxerga a violência sexual contra a mulher e o peso da cultura do estupro na perpetuação de discursos que culpabilizam as vítimas e isentam homens de qualquer responsabilidade, especialmente se possuidores de fama, poder e influência.

Na época dos fatos, como não poderia deixar de ser, recebeu destaque na mídia a narrativa defensiva de que a culpa seria da vítima, que não aparentava a idade que tinha e que, com seu comportamento, provocou a violência direcionada a ela. Já os jogadores brasileiros foram pintados como meninos travessos que cometeram um deslize, “doces devassos” nas palavras de um colunista do Jornal Correio do Povo. Apesar da condenação judicial, não houve responsabilização ou mesmo reconhecimento da prática da violência pelos agressores, que seguiram a vida normalmente no Brasil, onde prevaleceu a versão estampada ostensivamente pelos veículos de comunicação.

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Em um sistema social de viés patriarcal e permeado pela cultura do estupro, é comum que homens adultos sejam infantilizados e tratados eternamente como meninos, enquanto meninas de 10, 12, 13 anos, sob a crença enganosa de que amadureceriam mais rápido, têm a adultização como regra, tanto no que se refere à sexualização precoce quanto à atribuição de tarefas de cuidado tradicionalmente delegadas às mulheres. Essa lógica perversa faz com que meninas, independentemente da idade, experimentem o que é “tornar-se mulher” para a nossa sociedade, sofrendo as violências que decorrem dessa condição.

Em casos como o retratado, há forte presença do pacto de cumplicidade masculina que tende a desabonar homens de suas responsabilidades quando o assunto é violência contra a mulher. Se forem homens famosos, que ocupam espaços onde circulam muito dinheiro e poder como o universo dos grandes clubes e organizações de futebol, a blindagem é quase certa e vem sempre acompanhada da presunção de culpabilidade de quem denuncia. Homens que se encontram nessa situação em geral recebem empatia e abraços de outros homens, que conseguem com facilidade se colocar no lugar do acusado, mas nunca no da vítima.

Trazendo para os dias atuais, mesmo com o passar dos anos, a opinião pública se divide em relação à história, mostrando que vivemos uma realidade em que ainda é tolerado aos agressores que mintam sobre os fatos e culpem as mulheres que os acusam, como recentemente fizeram os jogadores Robinho, que nega ter praticado o crime sexual pelo qual foi condenado na Itália e Daniel Alves, que no decorrer do inquérito que o investiga pelo mesmo tipo de crime, segue criando diversas versões do ocorrido que contrariam as provas já produzidas. 

Não à toa, um levantamento da Folha de S. Paulo de 2021, apontou que a cada cinco dias uma mulher denunciou um jogador de futebol por violência doméstica ou sexual. Isso considerando somente o estado de São Paulo e somente os casos que viraram denúncias formais que, como sabemos, são uma parcela ínfima diante do número real de ocorrências não formalizadas.

É de suma importância discutirmos as razões da repetição dessas narrativas para que possamos entender quais caminhos levam a isso. É preciso refletir por que motivos a adoção desses discursos, até hoje, resulta em posicionamentos e decisões favoráveis, mesmo quando são falhos e contraditórios.

A forma como a história é contada tem relação direta com o entendimento sobre o que aconteceu e quais foram os papeis de cada personagem, por isso, não podemos eximir os meios de comunicação da responsabilidade que carregam ao emplacar narrativas reprodutoras de rotulações sexistas e mitos de estupro que contribuem para a perpetuação da violência e a isenção de quem a pratica.

Estudos recentes, como o relatório da Agência Patrícia Galvão que aborda o papel social da cobertura da imprensa sobre feminicídios e violência sexual, demonstram que “persistem abordagens que reforçam a cultura de violência contra vítimas, atribuindo a elas a culpa pela violência que sofreram, pois teriam, segundo essa avaliação, ‘provocado’ o estupro, uma distorção sempre associada à sensualidade ou ao exercício da sexualidade, uso de álcool ou drogas ou algum outro comportamento considerado ‘inadequado’ a uma mulher”.

Muitas vezes essas matérias são construídas a partir de escolhas editoriais que priorizam a manutenção da dominação masculina e de interesses capitalistas como parâmetro. Sem a mudança desse viés e a reafirmação do compromisso com a verdade, que deveria reger a prática jornalística, não conseguiremos avançar. 

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A forma como a sociedade percebe os crimes sexuais também tem forte relação com a aplicação da lei pelo judiciário que, com base no falso paradigma da neutralidade do Direito, tende a desconsiderar as desigualdades de gênero e acaba por admitir teses de defesa predatórias, que atacam a personalidade e a reputação de quem denuncia, tornando a violência institucional contra a mulher uma constante nos processos criminais. Prova disso é que, mesmo atualmente, é possível encontrar doutrina e decisões judiciais que estabelecem o estereótipo da mulher honesta e mitos como o da resistência inequívoca como condições indispensáveis para a caracterização do crime de estupro, invertendo do ônus da prova e dificultando substancialmente a condenação.

Em consequência, o senso comum, fomentado pela repetição desses dogmas na mídia e no judiciário, reproduz assimetrias dos papéis de gênero que colaboram para a perpetuação das desigualdades e da violência como ferramenta de controle de corpos e manutenção das hierarquias sociais que supervalorizam a figura masculina e subalternizam as mulheres.

A recorrência desses casos revela o Brasil como porto seguro para o retorno de agressores que, mesmo condenados em outros países, nunca são responsabilizados de fato pelo que fizeram, visto que a reprovação social desempenha um papel fundamental na responsabilização e ressocialização desses sujeitos.

Para além da questão individual, precisamos pensar no que podemos aprender com casos como esse e no que é preciso mudar para que a violência sexual deixe de ser vista como consequência do comportamento da vítima. A representatividade feminina na imprensa, no futebol, no judiciário e em outros locais de poder é o primeiro passo para movimentar a sociedade em direção ao entendimento de que essas violências não podem ser normalizadas e à construção de novas perspectivas que não desumanizem nem descredibilizem as mulheres que denunciam.

É preciso ainda popularizar o entendimento de que a prática de violência sexual não é simplesmente um erro, mas um ato grave, que pode afetar negativamente a vida de uma mulher do momento em que ocorre até o último dia de sua vida.

Ignorar ou diminuir a importância desses casos é também desprezar as mulheres e as consequências devastadoras causadas por essas violências. Não podemos mais permitir que isso aconteça.

Finalmente, essa não pode mais ser uma pauta que interessa somente às mulheres. Precisamos, como sociedade, encarar a gravidade do problema e adotar políticas e condutas que previnam a incidência desses crimes e promovam justiça para as pessoas afetadas. Isso não acontecerá sem que haja o reconhecimento e a responsabilização efetiva por parte de quem pratica tais atos. 

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  • Lívia Reis

    Especialista em Ciências Penais, co-fundadora do Coletivo Nós Seguras e do Projeto Transversais, feminista, abolicionist...

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