Diversas, mas não dispersas: pluralidade e representação no #14EFLAC
Hey! Eu voltei…
Voltei pro Brasil, voltei pro Catarinas, voltei. Voltei há algumas semanas, sobretudo, do 14º Encontro Feminista da América Latina e do Caribe, realizado entre os dias 23 e 25 de novembro em Montevidéu, Uruguai.
Antes de qualquer coisa, antes dos relatos, antes até que questionem o primeiro verbo deste texto, é preciso lembrar que um dos primeiros problemas/dilemas que os Feminismos se colocam é a relação nem sempre (ou quase nunca) tranquila entre o público e o privado. “O pessoal é político”, é verdade, mas a dualidade acima é recheada do desafio de tornar público e discutir na esfera pública os temas até então restritos ao âmbito privado; aquelas questões marcadas pelos determinantes de gênero que, por exemplo, relegam às mulheres a casa e suas demandas (o cuidado, os filhos, etc) e aos homens a política, a cidade, a rua. As duas dimensões devem se entrecruzar. Há, portanto, diferenças conceituais e essenciais entre |o público e o privado| e |a publicidade e a privacidade|, sobre esta última dupla me chamem inbox, sobre a primeira: vamos ao EFLAC.
Sobre o #14EFLAC
O impacto e emoção já se iniciam ao desembarcar. No aeroporto a recepção, os reencontros, os encontros, a empatia. No ônibus coletivo a caminho do hotel a descontração, os papos em dia, o interagir, o se conhecer, o reconhecer-se. No hotel,um pouco mais de interação, entre uma chegada e uma saída, nas manhãs e nos cafés. Nas ruas o encantamento do mundo, a brisa… Ah, Montevidéu!
Chegar ao local do evento é outro desabrochar. Os batimentos feministas já começam ao descer do ônibus, o som, o batuque – literalmente – tocando no coração e naquela roda de mulheres animadas no local da inscrição e recepção. Já ali se vê por que somos diversas: mais de 2.000 mulheres de toda América Latina e de algumas nacionalidades caribenhas, como o Haiti e a República Dominicana, além de delegações da França, Espanha e dos Estados Unidos. Os olhares, as vestimentas, os sotaques, os risos, os cabelos! Não sei vocês, mas os cabelos das feministas, sempre me chamaram muita atenção, desde sempre: raspados, desconexos, roxos, vermelhos, coloridos, lisos, blacks, grisalhos…
Sim, #SomosMuitas e #SomosDiversas: mulheres negras, mulheres brancas, mulheres indígenas, mulheres heterossexuais, mulheres trans, mulheres lésbicas, mulheres com deficiência, mulheres mães, mulheres grávidas, mulheres de várias gerações, mulheres ciclistas, mulheres de várias e sem religiões, anarco, socialistas, comunistas, liberais – MuLhEreS!!!!
Assim como a diversidade do ser, do existir, e por isso mesmo, a diversidade e a pluralidade das pautas, dos espaços, das discussões.
Sobre os debates no #14EFLAC
Pelas manhãs, foram diariamente constituídas 10 assembleias temáticas: sobre subjetividade dos corpos, racismo, pluralidade feminista, violência urbana, violência no campo, economia feminista, autonomia, autocuidado, democracia e fundamentalismos, violência doméstica. Além disso, dezenas de espaços de debate, arte e cultura auto-gestionados ocorreram todas as tardes. Participei de modo mais sistemático de quatro espaços. A Assembleia intitulada “Democracia, Estado Laico e Fundamentalismo” e dos grupos de discussão “Trasversalização de Políticas Públicas de Gênero na Administração Pública”, “Feminismos e Paridade” e “Partidos Políticos, Movimentos Sociais e Candidaturas Feministas”. Foram espaços para dividir, compartilhar e aprender.
Há de fato muita pluralidade entre nós, há também muitos pontos que nos ligam e nos aproximam, não só enquanto mulheres, mas também enquanto cidadãs de uma mesma região. Há posto entre nós desafios similares. O primeiro deles é o enfrentamento recente ao fundamentalismo. Ficou evidente nas falas e debates que a ameaça conservadora atinge toda região da América Latina com as mesmas estratégias de ataque às pautas e direitos das mulheres: a falácia da ideologia de gênero, os posicionamentos contrários ao aborto, as posturas LGBTfóbicas, etc. Algumas alternativas propostas verteram sobre o reforço de vínculos dos movimentos de mulheres feministas com outros movimentos, a fim de conhecer outras estratégias e realidades para restabelecer os laços regionais do feminismo na construção de uma plataforma de luta unificada.
Pode ser que minha expectativa estava muito alta, pode ser que tive um olhar enviesado, pode ser várias coisas, mas o fato é que ao menos nos espaços de discussão pelos quais circulei, encontrei posicionamentos muito pouco anti-sistêmicos. Encontrei e até colaborei com várias críticas e desabafos sobre nossas realidades, porém poucas alternativas diametralmente opostas daquelas que já temos travado há décadas. Ainda que se tenha alertado para a importância de nos mantermos nas ruas gritando e resistindo, muitíssimas falas reafirmaram a necessidade de não renunciarmos aos nossos direitos, de fortalecer e legitimar a participação de nós mulheres nos diferentes espaços de poder e decisão entendendo que “o Estado não é um ente monolítico, há brechas e estratégias que podemos construir para adentrá-lo”[1] e construirmos políticas públicas.
Esta perspectiva se relaciona com a roda de diálogo sobre políticas públicas de gênero na administração pública, que reuniu massivamente gestoras de políticas para mulheres de municípios ou estados dos diferentes países reunidos no EFLAC. Os objetivos desta reunião era evidenciar “onde estão as mulheres nos espaços de poder e decisão na América Latina”, “quais os desafios no processo de incidência das políticas para mulheres”, observar ainda a existência e de que modo se articulam “as agendas nacionais e internacionais de políticas para mulheres”, avaliando por fim “quais os avanços formais e reais se tem na região”.
Dentre as diferentes experiências compartilhadas, um debate ainda constante é a desigualdade no número de mulheres eleitas para as casas legislativas dos diferentes países. A presença feminina nos postos de tomadas de decisões, além de objetivar a garantia da qualidade às democracias, também se posiciona como uma tentativa de romper com barreiras sociais e estruturais construídas ao longo da história da humanidade. Não se trata apenas de eleger representantes de um grupo minoritário, mas também, de abrir espaços nos quais vozes que estão às margens da estrutura social possam ser ouvidas.
A partir dos estudos de monitoramento[2] da representação feminina é possível observar um aumento recente do número de mulheres presentes nos cargos de primeiro e segundo escalão dos parlamentos, todavia, ainda estamos diante de um quadro acentuado de sub-representação, em geral, as regiões não chegam a 25% de mulheres ocupando assento nos parlamentos. De acordo ainda com estes levantamentos, em relação ao quadro geral da América Latina, pela Argentina, os demais países apresentam níveis mais baixos de mulheres em seus parlamentos, ou seja, porcentagens menores que 30%, tendo Chile e Uruguai cerca de 15% e o Brasil com 9,9%. Já Argentina é o grande destaque pelo aumento desse dado em poucos anos, foi de 6,3% em 1990 para 27,6% em 1997, com um salto de quase 10% em 2005, e mantendo o patamar dos 35% até 2017. Em contrapartida, o Brasil é destaque negativo por historicamente ser um dos países com menores índices de mulheres em seu parlamento, tanto que em 2017 o valor não chega aos 10%.
Mas, para além do desafio relacional do “feminismo e a paridade”, o que se apresentou de debate acerca de conteúdo para “os movimentos sociais e os partidos políticos”? Há um consenso de que é importante ampliarmos o número de mulheres nos parlamentos, mas há também o entendimento de que a paridade não é suficiente, pois “é preciso garantir a elegibilidade de mulheres feministas”, comprometidas com as pautas das mulheres. Isto por que, não só no Brasil como em outros países, foi relatado que “os partidos de direita estão fazendo seu papel” de cumprimento mínimo de regras e até elegendo mulheres a serviço de pautas conservadoras. Bradou-se ainda a necessidade de ampliarmos nossas vozes mobilizadas e comprometidas com nossas pautas em outras estruturas do tecido social que não só os parlamentos e partidos, mas também sindicatos e movimentos sociais amplos.
Ainda que se mantenha evidente que mulheres ocupam os espaços públicos para visibilizar, num primeiro momento, pautas até então demandadas ao espaço privado – isto por que tais temas ainda não se colocam democratizados entre homens e mulheres no escopo mais amplo da sociedade – de modo geral, como bem pontuou uma companheira chilena, é preciso evidenciar que “as mulheres não têm apenas pautas ‘específicas’, mas possuímos visões de mundo, queremos formular uma concepção de Estado, Democracia e Sociedade que nos caiba”.
[1] Fala anotadas nos rascunhos e memória, sem interlocutora identificada.
[2] Maiores informações: http://www.ipu.org/wmn-e/world.htm , https://agenda.weforum.org/topic/global-issues/gender-parity/, http://estadisticas.cepal.org/cepalstat/WEB_CEPALSTAT/Portada.asp