Crônica da incontingência da clausura (48) – o contágio, a clausura e o medo
Domingo, sete de fevereiro de dois mil e vinte e um. Mais uma semana de chuvas, vento, frio e calor em Florianópolis. Por conta desse clima instável, grudou-me uma gripe de verão dessas que provocam espirros e dor no corpo de fazer suar pelas unhas – mas é só gripe mesmo e vai passar. Ando com saudades de minha mãe, de sua casa, das plantas, pássaros, gatos e sinfonias de batráquios. Logo volto e por lá vestirei a camponesa!
Já falei numa crônica sobre a minha participação no grupo de poetas em Itajaí, no final dos anos 1980. Pois bem: voltamos a nos reunir e resolvemos participar de um edital da Secretaria de Cultura de Itajaí para a produção de uma antologia poética/iconográfica. Nossa participação propõe recuperar a memória histórica do Grupo de Poetas e Escritores Mário Quintana. Em menos de uma semana escrevi umas cinquenta páginas, debruçada em documentos de época. Suponho que a tensão provocada por esse trabalho em tempo recorde é uma das razões desta gripe. Menos, Marlene!
Me dou conta de que fiz tantas vezes isso na vida, só que eu era jovem… hoje pesa, mas não sei viver sem projetos literários. Este é mais um e muito me apraz pô-lo em prática! O livro Crônicas da Incontingência da Clausura foi para a gráfica, que emoção! Mas este é o volume 1, porque logo virá o volume 2. Vamos em frente!
Também nesta semana participei do projeto Segundas Feministas, promovido pelo Grupo de Trabalho de Gênero da Associação Nacional dos Professores de História, gravando um podcast. Obrigada pelo convite, gente! Outro evento foi gravar uma fala sobre gênero e feminismo com extensionistas rurais da Epagri. Tenho afinidade com o trabalho destas profissionais desde que trabalhei na Acaresc, e isso faz tempo, antes de ingressar na carreira acadêmica. Ivanda Mason, obrigada!
Essas coisas feitas durante a clausura, por telas de celular e computador, não oferecem encontros, abraços, trocas afetivas reais, café compartilhado e risadas. Mas é o que temos neste momento. Desde quando este vírus medonho nos confinou, e já se vão dez meses e vinte e um dias, o cotidiano degringolou. Quando vou poder dançar tangos? Sigo esperando a vacina, todavia não será em breve a soltura de nossos corpos e braços por aí. Cuidemo-nos, por ora.
A cada dia que passa temos a notícia de que alguém que conhecemos, amigos ou mesmo parentes, está contaminado com o vírus maledeto. Vivemos de sustos. Uma amiga, daquelas que a gente ama de paixão, nesta semana foi diagnosticada como positiva para o coronavírus. Ela me escreveu:
– “A partir deste momento começo a pensar como alguém que está contaminada. Sobre mim, não há o que fazer para arrancar esse seboso do corpo. Começo a saga de pensar com quem tive contato nos últimos dias. Aviso meus colegas da escola com quem estive pela manhã, ambos têm pais idosos. Fiquei apavorada só de pensar que através de mim podem ter se contaminado e estariam transmitindo aos seus velhinhos. Depois comunico ao diretor, ao síndico do prédio, à amiga para quem entreguei máscaras ontem, e faço esforço para lembrar das pessoas de quem estive por perto… mesmo com a consciência de que sempre uso máscara e álcool gel. Em casa começa a saga: separar minhas coisas e mudar meu companheiro para um outro cômodo… espaços separados dentro de um apartamento.
Chego à conclusão de que quem se encontra na minha situação tem duas opções: ou ser canalha irresponsável ou pensar nos outros. Porque eu provavelmente vou passar por isso ilesa, mas me preocupo com as pessoas que desenvolvem sintomas. Penso no Gilberto, no Felipe, no César, em outras tantas pessoas conhecidas que morreram. Teria Felipe morrido de Covid? Os boletins médicos dos que morreram depois foram bem parecidos. De que vale saber isso agora? Ele se foi. Penso nas pessoas que não têm como se isolar em casas minúsculas. Penso nos idosos que são infectados pelos mais jovens que saem por aí irresponsavelmente. Penso nas populações de rua. Penso nas pessoas que vão trabalhar arriscando-se para não perderem seus empregos. Penso nas mulheres que têm filhos pequenos sem a possibilidade de se isolar. E agradeço pelo meu canto, pelo conforto e por ter um companheiro parceiro que cuida de mim. Fico imaginando que o que me difere de alguém que está no hospital é o fato de que meu organismo reagiu bem. Para quantos não terá sido assim… Até quando iremos nessa roleta de uns sem nenhuma reação e outros morrerem? Por que esse governo maldito não se mexeu antes para viabilizar a vacina? Por que não testam mais gente? Quantas mortes poderiam ser evitadas?
Como peguei? Não sei… desconfio ter sido numa endoscopia que fiz recentemente num hospital. As condições de higiene eram péssimas e o recepcionista subiu no elevador comigo sem máscara… Tudo é muito estranho. Só o fato de saber que meu descuido ou minha irresponsabilidade podem provocar a morte de alguém me desestabiliza. Não saio do quarto sem proteção. Afinal sobre qualquer coisa que eu falar posso estar contaminando. Em tudo o que toco espirro álcool 70. Em tudo! Outro dia fui pegar um pão dentro de um saco… Desisti. Como pegar sem encostar a mão no saquinho, na outra fatia e depois como limpar sem contaminar? Tenho relegado essas tarefas ao meu companheiro. Ele serve, deixa na porta do quarto. Hoje pela manhã meu cachorrinho chorando… querendo colo. Até isso tem que raciocinar. Devo ou não devo? Animais não entendem. Exagero? Não… medo. Uma bobeira e posso submeter o meu companheiro e outros tantos a uma infecção. Eu não me perdoaria.
Estou assintomática, mas o prontuário diz que estou com o pior vírus do mundo ativo no meu corpo. Em agradecimento ao universo, vou permanecer um bom tempo reclusa. Será essa minha contribuição. Quero a vacina! Por mim, por nós!”
Ah, amiga Onice Sansonowicz, estou indignada: cuidou-se tanto e com consciência do perigo do contágio, trabalhou remotamente, é jovem… como? Enclausurada num quarto da casa e eu não posso ir vê-la… Aguenta firme que vai passar! Ninguém solta a mão de ninguém, mesmo que virtualmente! Logo nos veremos e vamos dançar e brindar à vida e à vacina!
Mais enraivecida fico com declarações estúpidas. Há duas semanas, um padre católico numa capela de Pedras Grandes, diocese de Tubarão, Santa Catarina, durante a missa, além de dar informações falsas, disse que “o vírus não é católico” pois “está comprovado que (a vacina) é feita com fetos abortados dos milhões de abortos”, estes “seres humanos jogados no lixo dos hospitais”. Quem pensa que é este demoníaco padre sabe para afirmar o contrário do que dizem a ciência e os órgãos de saúde? E associar a vacina ao aborto? Parvo. Outro canalha. E em nome de Deus! Foi repreendido pela Diocese, e o Ministério Público apura o caso. Que estrago para a mente dos fiéis! A população de Pedras Grandes é de pouco mais de quatro mil habitantes e, de acordo com o último boletim da doença, registra 252 casos e 9 óbitos em razão da Covid-19. Ah, o padre não sabia! Mórbido. Depois da confusão, o hipócrita pediu perdão… Deus não perdoa essa barbárie, pois!
O que me dá raiva funda é o negacionismo das pessoas cujo cérebro atrofiou, só pode. Em Santa Catarina são quase sete mil óbitos pelo coronavírus. No Brasil, mais de 230 mil pessoas perderam a vida. Tão devastador quanto essas perdas é assistir ao descaso com que o governo trata a questão das mortes e incita o desrespeito às normas sanitárias. Enquanto isso, distribui bilhões de reais aos aliados parlamentares, e gasta outros tantos em quinquilharias, luxo, alimentos caros e ostentação. Quem o segue o atual presidente aplaude e ignora os crimes do despótico mandante que outrora andava de coturnos. “O importante é tirar o PT”, diziam, e dizem, os desmemoriados de um tempo em que havia melhor distribuição de renda e as pessoas se sentiam cidadãs.
Às vezes meu sentimento humanitário desalinha e detono minhas fúrias para essa gente sem noção e caráter. Pasmem: nesta semana, na lista de prioridades do governo está a flexibilização do uso de armas. E a crise epidemiológica? Não, o importante é armar a população. Insano, nacionalicida, canalha. Mia Couto resume o que vivemos: “Em tempos de horror, escolhemos monstros para nos proteger”.
Está comprovado em vários países, inclusive no Brasil, que armar a população faz com que aumentem os crimes e, dentre estes, os feminicídios. Nestes trinta e sete dias do ano de 2021, no Brasil, ao menos 130 mulheres foram assassinadas por serem mulheres. Em média temos quatro assassinatos por dia motivados por discriminação de gênero no âmbito doméstico.
Em Santa Catarina têm-se registros de um caso de feminicídio por semana. Essas mortes também são uma pandemia. As armas são os falos dos covardes.
Urgem políticas públicas para conter esse cancro social, e não a liberação de armas. Em Santa Catarina, as instituições envolvidas na implantação do Observatório Estadual da Violência Contra a Mulher retomaram, em janeiro, os trabalhos para sua estruturação. A criação deste Observatório está prevista em lei estadual e, segundo a deputada estadual Luciane Carminatti (PT), a meta é colocá-lo em funcionamento até o final deste semestre. Projetos de lei são imprescindíveis e urgentes na erradicação das violências contra mulheres.
“Quando a moral se baseia na teologia, quando o direito depende da autoridade divina, as coisas mais imorais e injustas podem ser justificadas e impostas”, filosofou Feuerbach em 1841. Mesmo depois de quase duzentos anos, essa ideologia perversa ainda persiste em muitas cabeças… A barbárie resiste à passagem dos tempos…
Marlene de Fáveri, 07 de fevereiro de 2021. Florianópolis.