Crônica da incontingência da clausura (26) – ou da confissão e dos medos das meninas
Domingo, seis de setembro de dois mil e vinte. A noite em Florianópolis não tem mais o mesmo gosto. Empresários ensandecidos e donos de imobiliárias construíram prédios ao lado do meu apartamento e sobre um mangue que abrigava centenas de espécies de vida animal e vegetal. Quando mudei para cá, escrevia na sacada com o verde de árvores acolhido por um clarão de atiçar lobas na lua cheia. Agora só vejo janelas acortinadas e concreto, e a lua passa ao largo. Broxante. Ainda mais que nesta semana a lua cheia está em curso – socorra-me, oh virgem das tangueiras! Comparado com Turvo, lá o silêncio e as estrelas compõem um feitiço de beleza esverdeada que nem os latidos perturbam.
Estou nas tratativas da produção do livro de crônicas do cotidiano feitas durante a pandemia. Escrevi compulsivamente nos meses dessa peste torturante: são vinte e cinco crônicas que juntar-se-ão numa narrativa de como vivi este tempo. Vai dar certo! Passei a semana burilando entre este projeto e outros escritos. “Os cães ladram, enquanto canalhas ladroam a pátria – ao povo, migalhas”. Curto poema de ira com a crise de tudo que assola este país e que chafurda numa recessão provocada pelo rançoso oportunista alçado ao poder em nome de um deus ignóbil, um matador de pessoas. Sanguessuga da pátria num país que estertora e agoniza. Um nacionalicídio em curso.
Reverbera nas mídias o ácido estupro da menina de dez anos e sua saga na busca do direito de abortar com segurança ante ameaças de uma manada feroz de religiosos e religiosas chamando-a de “assassina”. Nora Prado, atriz e poetisa gaúcha, vai direto ao ponto: “Religião sem educação é barbárie”. Sempre foi.
Revelado e noticiado, esse fato escabroso é apenas um deles. Outros milhares de meninas são trituradas na sua inocência diariamente. Asco é o que sinto desses violentadores mórbidos.
O ocorrido também fez com que mulheres se encorajassem na denúncia contando suas histórias tristes, como fez Aline Covolo Ravara, numa narrativa de dor, silêncios e segredos aviltantes. Falar é preciso. As palavras não apagam as cicatrizes, mas auxiliam no ver-se e no libertar-se. Indignar-se é preciso.
Religiões sangram corpos em nome da pureza d’alma. A fé eu respeito, aquela que não se priva da solidariedade e do cuidado para com seus próximos, que emancipa e acolhe. No mais, é castração e pavor. Fui educada para sentir esse medo e pavor dos homens: fugir deles para preservar o hímen. Raios! A eles nada se dizia. Só os encorajavam a serem machos reprodutores e valentes. Maldição de Eva? Ah, de espúrios medievais a canalhas contemporâneos, continuamos gritando a todos os ventos que nossos corpos nos pertencem. “Tire o rosário de nossos ovários”, na fase de um coletivo feminista.
Um episódio dia desses alterou-me sinapses: uma amiga dos tempos de infância contou-me como está sobrevivendo na pandemia. No entremeio da conversa, um problema: “Olha, íamos fazer a primeira comunhão da minha neta agora em setembro, mas nem terminou o catecismo porque a pandemia atrapalhou”. Sua neta tem dez anos.
Como um fiapo de memória que vibra quando desenrolado, me vi naquele domingo de missa em Vila Maria, interior de Nova Veneza: eu também tinha dez anos. Desse evento ficou a única fotografia e primeira de minha vida e que apresento nesta crônica: ladeada por dois irmãos e uma irmã em frente do altar da antiga igreja de Nossa Senhora Auxiliadora – que foi demolida para construir uma “moderna” no lugar, um crime à memória arquitetônica da Vila! – cristalizou-se a imagem.
Era assim: as meninas vestidas com o branco da pureza, grinalda com flores da qual pendia um véu quais noivas precoces e segurando uma vela que as mães depois guardavam no fundo de um guarda-roupas como relíquia. Era por volta do Natal, como se nota no presépio no canto da imagem. Sempre me perguntei por que minha mão está espalmada e as dos meus irmãos em posição correta, fechada como a segurar o coração. Já era resistência?
A memória, essa voraz e terna possibilidade de retorno ao que parece ficção, mas que reelabora realidades, me restitui estas imagens do tempo de menina. Nas festas da padroeira, me vestiam de anjinha com asas e vestido de vestal bem largo e longo – era preciso esconder as curvas e qualquer pedaço do corpo que pudesse chamar a atenção – segurando uma vela que deixava cair pingos quentes de cera na minha mão. Igualava-me a outras meninas também vestidas assim para uma procissão em homenagem a Maria Auxiliadora. Eu não gostava, mas vai contestar? Adélia Prado me entende: “Antigamente, em maio, eu virava anjo. A mãe me punha o vestido, as asas, me encalcava a coroa na cabeça e encomendava: ‘Canta alto, espevita as palavras bem’”, escreveu num soneto.
Nessa idade eu era a inocência da inocência: acreditava em cegonha e rezava antes de dormir com medo do inferno. Sexo? Nem sabia que essa palavra existia! Lembro de minha mãe com a barriga muito saliente e, numa certa noite, meu pai pegou meu irmão mais novo no colo e me levou pela mão até a casa da nona. Estava muito escuro. “Escuta, é a cegonha batendo asas, está trazendo um neném!”, disse ele. Naquela noite, não consegui dormir, imaginando como seria era essa cegonha e como daria conta de trazer um nenê no bico. Noutro dia, voltamos para casa e havia um menino no berço ao lado do lugar de minha mãe na cama de casal. Cegonha eficiente, essa.
A primeira comunhão é uma celebração religiosa da Igreja Católica Apostólica Romana, em que os cristãos recebem pela primeira vez o corpo e o sangue de Cristo sob a forma de pão e vinho, tudo isso numa hóstia – paradoxos. Assim como o batismo, a comunhão torna os viventes prováveis habitantes de um céu pós-morte: desde que não cometam pecados mortais, veniais e da carne, sejam devotos e paguem dízimos.
As nossas roupas haviam sido costuradas por minha mãe. Ela era também costureira – digo também, porque fazia de um tudo para prover nossas vidas. Os calçados, todos adquiridos para a ocasião festiva, sempre eram de um ou dois números maiores para durarem mais: eram caros. Esta imagem me lembra também minha nona dando bronca em minha mãe: “O vestido da Marlene está muito curto e mostra os joelhos, miserere”, ela disse num rompante de fúria, porque minha mãe desobedecia às normas consuetudinárias de que mocinhas não podiam mostrar nada do corpo: na beatitude dela era pecado! As meias não cobriam toda a perna, que comédia!
O vestido, lembro-me bem, era de piquê de puro algodão, um tecido caro, mas com feitio apropriado para a ocasião. Tinha quatro pregas na cintura, duas à frente e duas atrás. Percebo minha face constrangida e por certo eu rangia os dentes, visivelmente incomodada. Explico duas razões: uma, o fato de estar num teatro onde tinha que pisar no lugar certo, não sorrir e comportar-me como convinha a uma menina – a ocasião solene exigia contrição e silêncio interno. A outra é que eu estava com muita fome.
Era regra, para comungar e como penitência, ir à missa de estômago vazio. Acostumada a comer minestra ou polenta com leite e ovos no café da manhã, naquele dia foi só água. Enfileiradas, as meninas de um lado e os meninos do outro, entramos na igreja sob cânticos à virgem Maria. Me coube um lugar na segunda fila de bancos. A missa era demorada, como demoram as missas quando o padre se acha o dono do tempo e os fiéis têm que aguentar como forma de devoção.
Mulheres carregadas de filhos e barrigas avantajadas suavam. Algumas amamentavam ali mesmo, cobrindo o seio com uma fralda ou pano. Lá pelas tantas, eu estava de pé e senti os olhos se anuviando. O padre rodopiou na minha frente, assim como os coroinhas e as imagens dos santos no altar e tudo foi ficando breu. O tronco, até então retesado, se curvou. Suava frio e respirava ofegante, em vertigem, e o que me veio à cabeça foi o pecado que cometeria se desmaiasse. A catequista percebeu e, discretamente, segurou firme meu ombro, me retesou de novo a coluna e baixou minha cabeça. Aos poucos as formas das coisas foram voltando e a primeira coisa que vi foi a menina do meu lado segurando o rosário com força e me olhando sem entender. Não podíamos falar. Hoje eu sei: foi a fome, depois de muito tempo em pé, além do mormaço, já que era dezembro. Deve ter sido uma queda de pressão.
O que se seguiu, fiz tudo automaticamente. Fui para a fila de meninas para receber a comunhão. A hóstia, que eu pensava ser doce, tinha gosto de farinha insossa e grudou no céu da boca que estava seco de fome. Deixei a hóstia ali até derreter, porque se fizesse movimentos ou mastigasse, o corpo de Cristo na minha boca podia sangrar e me poria em apuros: a condenação eterna ao inferno. Voltei ao banco, entrecerrei os olhos até terminar todo o ritual da missa solene, com o estômago revirado. A partir daquele dia, estava apta a confessar os pecados e a comungar. Passei a confessar ao padre meus pecadinhos tolos. Sempre os mesmos e tão inocentes!
Sabemos que padres na confissão, e pastores em outras situações, se outorgam o direito de assediar meninas que que se fechavam em silencio por se pecado denunciar. A confissão, aprendi com o filósofo Michel Foucault, foi e continua sendo uma estratégia da Igreja para saber e controlar o que se passa nas comunidades, mais especialmente com os corpos e a sexualidade das mulheres.
É também um espaço de erotismo – já contei como um padre em confissão perguntou para minha mãe quando menina o que ela “fazia com as mãozinhas”. Assim também era nas audiências medievais quando as ditas bruxas tinham que confessar nos detalhes como pecavam e faziam sexo.
Sabemos que aos meninos os padres diziam que cresceriam pelos nas mãos se eles se masturbassem, mas será que também perguntavam a eles em confissão detalhes sobre a sexualidade?
Volto à fotografia. Eu tinha a idade da menina que foi execrada por abortar após sucessivos estupros. Um padre sádico a culpabilizou expressando que “ela gostava de dar”, o maldito pedófilo! Fundamentalistas de plantão fizeram coro, assim com uma ministra sem noção que só entende de goiabas. A doença dessa gente está enraizada em religiões que bloqueiam o raciocínio em nome de dogmas emburrecedores e nocivos à saúde.
Seguiu-se a este episódio dolorido um gritante retrocesso: uma portaria (n. 2.282, de 27 de agosto de 2020) do ministério da saúde passa a exigir um termo de relato circunstanciado que deverá ser assinado pela gestante e por testemunhas, com a descrição da violência e violador, tipo e forma da violação e circunstâncias, mesmo em casos de aborto legal. Volta da inquisição? Do confessionário? Um absurdo que fere ainda mais corpos das meninas: as expõem à confissão de um ato do qual elas não têm culpa o que só aumenta a violência. Quando, no Brasil, registram-se seis abortos por dia em meninas até 14 anos estupradas – dados evidentemente subnotificados – o que as religiões têm a ver com isso? Qual desses, ou dessas, inumanas e imundas pessoas foram para a frente da cadeia onde o violador estava? Facínoras!Eu tinha dez anos nesta fotografia, e era inocente de tudo. Se tivesse sido estuprada naquela época, por certo teria morrido de medo de falar. De culpa. De solidão. Talvez me jogasse no rio. Minha nona me mataria, mas a mãe me abraçaria e promoveria um escândalo na Vila, eu acho. Me revolto. Me revolto. Me revolto…
Ufa… me salvei de um convento, de um casamento programado, de uma vida piedosa e parideira sob o pátrio poder. Os pecados são meras citações aqui… nem me lembro que sexo era coisa silenciada e tão pecaminosa. Se me revolto, também me sinto livre para ousar; e ouso com tesão e volúpias. Para o inferno quem nele acredita.
Marlene de Fáveri, 06 de setembro de 2020. Florianópolis.