Domingo, vinte e oito de junho de dois mil e vinte. Hoje faz cem dias desde que um vírus medonho e fantasmagórico submeteu meu corpo à clausura. Por coincidência eu estava no interior do Estado. Tive que voltar e por ora estou em Florianópolis. Nesta semana a cidade voltou ao estado de alerta laranja com normas rígidas de higiene e isolamento/afastamento social. Claro que tenho medo de, inadvertidamente, encostar num minúsculo quase nada pestilento e vir a adoecer. Cuido-me e fico em casa. Admito: está difícil e os dias se confundem. O isolamento agride o psicológico e faz desandar as coisas mais cotidianas. Tive insônia e uma labirintite que fez-me aérea por dois dias. Espero que passe essa pandemia e liberte nossos corpos, nosso sexo, nossas alegrias dos encontros…

Me resigno. Penso nas pessoas que, para sobreviverem, obrigam-se à exposição ao vírus. Falo das mulheres que, além da luta por sobrevivência de si e dos filhos, sofrem violências de gênero, raciais, de classe, morais, submetidas à exploração de patroas e patrões insensíveis à humanidade de quem lhes serve com trabalho árduo. Temos um governo que não se comove com as misérias humanas e lhes usurpa os direitos mais elementares. Submete o país a uma tragédia sem precedentes: humana, econômica, social, cultural, moral, educacional e de saúde. Nos envergonha. A pátria está descarrilhada.

A população mais vulnerável sofre e as mulheres sofrem ainda mais. As exigências da pandemia têm sobrecarregado as mulheres, é fato. Elas sofrem com agressões físicas, sexuais, morais, patrimoniais, geracionais e até com a morte pelo crime de serem mulheres. O Portal Catarinas, numa parceria com mídias independentes, iniciou um monitoramento da violência doméstica no Brasil na pandemia, intitulada: “Um vírus e duas guerras”.  Neste estudo, mostra que as mulheres enfrentam duas guerras: a pandemia e a violência doméstica. Somente nos meses de março e abril deste ano, no Brasil, 195 mulheres foram assassinadas, número superior em relação aos mesmos meses do ano anterior.

Em Santa Catarina, de janeiro a maio, 21 mulheres foram vítimas desse crime hediondo. Uma iniciativa para combater esse verdadeiro câncer social é a proposta de criação do Observatório Social da Violência Contra a Mulher, apresentada em meados deste mês ao parlamento catarinense pela deputada Luciane Carminatti. Outra foi a aprovação neste ano na Câmara dos Vereadores de Florianópolis da proposição “Mulher Florianopolitana”, de autoria da suplente de vereadora Carla Ayres, que obriga a prefeitura municipal a reunir dados sobre violência contra a mulher. São projetos importantes para dirimir violências contra as mulheres e os apoiamos com veemência.

Estamos confortáveis com isto? Eu não estou. A morte de mulheres por assassinato praticado por seus parceiros é também uma forma de pandemia. Em 2019, foram assassinadas, no Brasil, 1.314 mulheres. E, conforme dados que sabemos serem subnotificados, 65 mil sofreram estupros, a grande maioria são vulneráveis ou menores de 14 anos.

Neste ano, o isolamento social obrigou muitas mulheres a um cárcere privado que as mantém mais tempo próximas de seus parceiros, fator que exacerba as violências. Também a maior aproximação com as crianças fez aumentar o estupro de vulneráveis. Já disse numa crônica – 8M na luta diária – de meus lamentos uterinos e minha fúria diante dos homens que usam da força para violentar e estuprar crianças, torturar e matar mulheres.

A violência, provavelmente, sempre fez parte da experiência humana.  A Organização Mundial da Saúde a define como o uso intencional do poder e/ou da força física como forma de ameaça ou na prática, contra si próprio, contra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento, lesão, morte, dano psíquico, privações e alteração no desenvolvimento. As violências de gênero agregam-se a esta definição, com o agravante de manifestarem-se por relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens, produzindo e reproduzindo relações de dominação e subordinação, reforçadas pelo patriarcado – sociedades onde os homens detêm o poder e o exercem em geral com violência.

Foto: arquivo pessoal

A palavra violência deriva do latim violentia e violentus ou veemência e impetuosidade. Do verbo violare temos o sentido de profanar, estuprar, deflorar, violar, invadir. O prefixo vis é potência, vigor, força física. Assim, violentar é o exercício da força sobre outrem, opondo-se ao direito e à justiça. Um arcabouço teórico, em boa parte construído pelas religiões, ligou violência à valentia, virilidade, força, coragem e a virtus, à bravura, eficiência, virtude. Do teórico, passou-se às cobranças nas prédicas e na educação religiosa e burguesa: aos homens, os espaços das ruas, da política, do público, da virtude, da coragem, da força e do domínio. Às mulheres, o limites do espaço privado.

As mulheres de minha geração, mesmo que estivessem em todos os lugares, não lhes eram dados direito a voz, opinião, participação nos negócios da família e nas decisões. Eram fazedoras de tudo e sempre caladas. Se acaso se insurgissem, eram consideradas loucas e alvo de chacotas. Ordens dos homens não se discutia. Lembro como muitas mulheres eram tratadas no meio rural e as violências que, hoje sei, sofriam. Prescrições – papéis pré-inscritos/escritos – eram naturalizadas, como se fosse o certo a fazer calar, aceitar, zelar pelo casamento, jamais responder a um insulto, trabalhar sem descanso, parir e cuidar de uma penca de filhos.

Não se falava sobre nada que expusesse uma situação de violência, embora, numa comunidade rural, sabia-se de coisas que aconteciam também no âmbito do privado. Falava-se em sussurros entre mulheres, mas não havia denúncias, nada que viesse a expor a família e sua honra.

Não ouvi a palavra estupro, assédio ou violências sexual em toda minha infância e adolescência. Mais tarde vim a saber histórias escabrosas que na época eram silenciadas e escondidas, assim como era comum mulheres casarem grávidas e serem culpabilizadas por esse ‘pecado’. Diziam “tenha cuidado com os homens”, mas eu não sabia qual cuidado e por quê.

Foto: arquivo pessoal

Quando eu era menina, sofria muito com dor de dente – no interior, e sem condições financeiras, dor de dente se ‘curava’ colocando algodão com cachaça para amortecer a dor. Mas ela voltava. Lembro de uma ocasião em que não aguentava mais de dor e minha mãe juntou as economias para que eu pudesse ir a um dentista. Eu tinha uns treze anos. Na cadeira, senti uma mão nos meus seios enquanto com a outra o dentista mexia na minha boca. Eu chorava de dor, e ele me apertava. Eu era a própria inocência, mas sabia algo estava errado. Tive que voltar ao dentista várias vezes e, já ia encolhida, rígida de medo. Da última vez, já terminado o tratamento e eu ia saindo, ele me segurou com os braços e me apertou no corpo inteiro: “Deixe eu ver se ficou tudo certo na tua boca”, disse, me obrigando a abri-la enquanto ele arfava. Senti algo duro contra meu ventre e quis gritar; ele fechou minha boca com a mão e soltou grunhidos. Na época, eu não fazia ideia do que estava acontecendo. Só mais tarde soube que ele gozou em mim. Maldito.

Não contei para ninguém, por vergonha, culpa e medo. Desde então, tive medo de dentistas. Mais tarde, contei essa história para um amigo dentista que sugeriu que eu denunciasse; aliviou meu medo. Por muitos anos, só de passar na rua onde era o consultório, eu tremia. Soube que ele já morreu, e desejo que esteja no mais fundo do inferno.

Uma violência sexual nunca mais sai da memória. Desumaniza, mata sonhos, projetos, encarcera desejos, adoece e embrutece. Durante todo o tempo em trabalhei com mulheres tanto rurais, ou quando lecionei no ensino fundamental e na Universidade, ouvi depoimentos que pareciam ainda sangrar.

Lembro bem de uma aluna do ensino fundamental que me pediu para ficar na escola por medo de voltar para casa. Enquanto sua mãe trabalhava, o padrasto a seviciava todos os dias com ameaças de que a mataria, a ela e à mãe, se contasse. Eu não tinha preparo para lidar com tal situação, mas não havia a quem recorrer. Sugeri que só entrasse em casa depois que sua mãe chegasse, mas ela argumentou que tinha os trabalhos de escola e os da casa para dar conta, e não podia contar para sua mãe o porquê do atraso. Como lidar com isso? A escola é um lugar que precisa de mais atenção e um olhar mais cuidadoso na percepção destas violências que permitam tomar medidas protetivas e fazer denúncias.

Com o exercício da docência, a experiência me deu um olhar mais fino na observação de violências. Por exemplo, numa sala de aula ou plateia, quando o assunto versava sobre violências contra mulheres nos mais variados temas, percebia incômodos em olhares e gestos que denunciavam uma memória de dor. Lembro de uma aluna que saiu da sala de aula chorando e a encontrei no banheiro aos prantos. Me contou que o irmão a estuprara durante anos, até que criou coragem e falou para a mãe. “Não aguentava mais e contei para a mãe, mas ela disse que era fantasia da minha cabeça. Assim que pude saí de casa correndo. Cresci com nojo e medo de meu irmão e odiando minha mãe…isso me dói”, disse. Só pude abraçá-la e acalentar seu pranto.

Cresci com a imagem de ter visto várias vezes um vizinho que, por um motivo qualquer, segurava sua esposa camponesa pela cabeça, encostava a faca no seu pescoço gritando: “Te copo, su béstia” – te mato, animal. Ela postava as mãos e rezava. Havia outra que, quando o marido chegava bêbado, empunhava um facão e expulsava a ela e seus filhos de casa. Ambas mais tarde cuidaram de seus maridos doentes até vestir-lhes o paletó da mortalha. Penso que a viuvez, nessas situações, é a libertação.

Mas nem sempre. A avó de uma aluna, viúva já fazia seis meses, não dormia sozinha com medo que ele voltasse do outro mundo, a surrasse e a tomasse à força. Na esfera conjugal violências manifestam-se com frequência através dos maus-tratos físicos, do isolamento social, da intimidação e ameaças. Mulheres são submetidas a práticas sexuais contra a sua vontade. O acesso aos cuidados de saúde e aos meios de comunicação, bem como o apoio das famílias muitas vezes são escassos e até interditados ou inacessíveis. Observando estas situações, compus um poema. Viúva o intitulei:

Todas as noites ele voltava
cheirando a álcool
empunhando facas
sapateando macheza
esbravejando demônios.
Todas as noites ela pegava
os filhos, deixava a casa e
escondia-se na mata.
Lá esperava – só voltava
depois que ele dormia.
Na manhã seguinte
o cotidiano de todos os dias.
E assim ela seguia.
Até que, um dia, ele morreu.
Viúva, ela sorria.

Sei que é mórbido. O que não é mórbido na violência? São tantas as cicatrizes e feridas ainda sangrando na vida das mulheres e meninas que sinto como se a tortura fosse minha. O que tenho para contar não cabe numa crônica. Durante a minha adolescência e mesmo adulta, sofri várias violências, mas não tinha como gritar, denunciar, falar. Minha voz era a voz das mulheres que não eram ouvidas. Se falassem, seriam consideradas culpadas. Então me calava.

Culpabilizar as mulheres sempre foi um álibi do machismo. Desde que as religiões as rotularam como pecadoras e submissas a um patriarca, a elas atribuíram culpas e as condenaram ao medo. As mulheres vivem sob tensão. Se antes da pandemia as violências já eram reais e incontingentes, agora elas vêm se acumulando. A quarentena obrigatória para conter o coronavírus não interrompeu a pandemia do feminicídio. Ao contrário, aumentou os casos de violências sexuais. Às violências de gênero somam-se aquelas advindas dos preconceitos de raça, de classe, de geração, de corpo, de etnia, de sexo.

Mas estamos vivas. Continuaremos vivas e intransigentes com o que nos afeta. Hoje podemos denunciar, falar. Nunca mais nos calarão. Queremos relações não tóxicas e junto com homens que respeitem nossa dignidade, nossa cidadania e direitos. “Não se cale”, “nenhuma a menos”, “meu corpo, minhas regras”, são frases de ordem. Não acordamos porque não estávamos dormindo, mas conquistamos lugares de fala, de escrita, na política, de gerências, nas ciências e outras. Somos capazes e buscamos respeito.

Sim, faremos a revolução. E nela não caberão violências de gênero. E queremos os homens ao nosso lado.

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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