Chile: a luta popular nas ruas e a escrita de uma nova constituição
O Chile está passando por um momento histórico, resultado da luta popular nas ruas: escrever sua nova constituição. Esse momento é marcante, pois além de romper o atual texto redigido pela Ditadura Militar (1973-1990), a nova constituição será elaborada por uma comissão eleita com paridade de gênero e representantes populares, como é o caso da sua própria presidenta, Elisa Loncon, uma liderança Mapuche.
Por outro lado, muitos chilenos não estão presentes neste momento, pois continuam presos por terem participado das últimas manifestações que lotaram as ruas de várias cidades chilenas com protestos e intervenções pedindo por direitos básicos como água, saúde, educação e, justamente, uma nova constituição – este período ficou conhecido como Estallido Social, e nós fizemos uma zine explicando e traduzindo alguns materiais de lá sobre esse tema, clica aqui pra ler.
O impeachment do atual presidente Piñera e ideias de organizações populares anticapitalistas também ganharam as ruas e com rejeição recorde de 84%, a resposta do presidente neoliberal para se manter no poder foi a repressão.
Apenas no período de outubro a dezembro, os primeiros 3 meses do Estallido, ao menos 2 mill pessoas foram presas ilegalmente, 347 pesoas perderam parcial ou totalmente a visão com disparos de policiais e mais de 476 queixas de tortura foram registradas de acordo com o relatório do Instituto Nacional de Derechos Humanos (veja o mapa sobre o histórico de violação de direitos humanos de outubro/2019 até hoje aqui).
A resposta política-institucional dos deputados e senadores veio ainda em novembro de 2019 nesta proposta de uma nova constituição. Desde então, muita coisa rolou até que em maio de 2021, 155 pessoas foram eleitas para escrever o novo texto.
Diante desse contexto complexo em que uma conquista popular está acontecendo durante um governo neoliberal – ao menos até novembro de 2021, quando o país terá eleição presidencial – entrevistamos Valentina e Camila, duas ativistas-pesquisadoras feministas que há anos acompanham as lutas sociais nas ruas de Santiago e Valparaíso, os principais territórios de decisão política chilena.
Valentina Salinas Carvacho é mestre em estudos latinoamericanos pela Universidade do Chile e doutoranda na Universidade de Barcelona. É especialista em pensamento feminista latinoamericano, professora, pesquisadora e ativista na Coordinadora Feminista 8M (Chile).
Camila é pesquisadora na área de artes e antropologia e compõe o Pésimo Servicio, um coletivo de arte política interdisciplinar que nasceu em Valparaíso durante a revolta social chilena, em outubro de 2019. O coletivo faz montagens audiovisuais, intervenções na rua e experimentos gráficos sobre temáticas como saberes e afetos, violação dos direitos humanos e construções coletivas.
Revisión histórica
Qual foi o caminho percorrido nas ruas até a conquista da reescrita da constituição? Elaborada em 1980 pelos golpistas militares, a constituição chilena é conhecida como um “experimento neoliberal”, pois sua prioridade é o mercado. Nesses 41 anos esta lógica acarretou graves problemas sociais e uma desigualdade absurda, onde o 1% mais rico detém 25,6% da riqueza nacional, enquanto 50% da população mais pobre representa apenas 2,1% da riqueza do país.
Diante dos diversos problemas acarretados pela desigualdade, os chilenos estiveram nas ruas reivindicando direitos básicos em vários momentos da sua história recente. Fizemos essa linha do tempo com base nas respostas de Valentina e Camila para contextualizar essa caminhada.
Listas de independientes
Um dos pontos mais discutidos até então foi o processo para eleger os redatores da nova constituição. Em um primeiro momento, a proposta vinda do governo era que apenas pessoas ligadas a partidos políticos pudessem se candidatar. Com pressão popular, pessoas sem ligação partidária também puderam se candidatar.
Denominados “independentes”, eles formam quase 42% da comissão eleita. É importante ressaltar que tanto a paridade de gênero, quanto a reserva para representantes dos povos originários também foram implementadas ao longo do tempo por pressão popular, feminista e de setores da esquerda entre novembro de 2019 e maio de 2021, quando ocorreu a eleição.
Composição final da comissão eleita é:
Sobre essa composição, Camila analisa a importância de ter vozes múltiplas: “Acho muito bom que tenham entrado pessoas que nunca haviam tido um espaço no Chile antes desse processo. Portanto, agora existem representações de extrema direita e também de lideranças Mapuche ou pessoas da diversidade, pessoas das lutas ambientais, pessoas que foram presas por acusações autoritárias do Estado. Então, é interessante que hoje eles possam estar expondo seus pensamentos, seus critérios e sua realidade neste espaço”.
E complementa que mesmo com essa representatividade, a pressão nas ruas deve continuar para que realmente as pautas sociais sejam implementadas na Nova Constituição. Valentina também comenta sobre esse aspecto:
“Os ativistas continuarão a desafiar os constituintes para que um programa dos povos se concretize. Mas sabemos que nem tudo se define no campo jurídico, mas também na tentativa de construção de novas formas de vida digna para a sociedade a partir da autogestão, da pedagogia popular, entre tantas outras para dar continuidade a um processo de transformação de um país que Estava desmoronando à custa da precariedade de nossos territórios e de nossas vidas.”
No era depresión, era capitalismo
Autogestão foi uma palavra que apareceu muito nas respostas das entrevistadas e reflete o sentimento de grande parcela de chilenos em movimento por construções a partir do rompimento da lógica capitalista e de transformações profundas na forma de se relacionar consigo, com as pessoas e o entorno.
“Por exemplo, antes da discussão sobre gratuidade universal na educação superior: vamos discutir sobre que tipo de educação queremos? Sobre quais são as estruturas que a educação propõe para os estudantes? Vamos ver o aprendizado e o crescimento como algo integral? Ou, em termos da saúde. Me parece que a saúde traz consigo ainda mais elementos que não sei se estarão presentes nesta Convenção, como a relação com nosses corpes, a alimentação, o esporte, o direito a um meio ambiente limpo e a incorporação da saúde mental como um tema relevante. Não sei se as coisas funcionam tão linearmente por “causa-consequência”, sinto que há muito trabalho a ser feito, traz Camila.
A profundidade deste debate vem de uma percepção empírica da população que viveu ao menos duas gerações dentro do neoliberalismo institucionalizado e viu, por exemplo, a sua própria natureza ser “vendida” para multinacionais estrangeiras enquanto idosos passam por uma velhice precarizada dentro de um sistema de pensões privadas que não é funcional.
Essas injustiças e contradições demonstram a necessidade de uma mudança realmente mais profunda para Valentina:
“Sabemos que nem tudo se define no campo jurídico, mas também na tentativa de construção de novas formas de vida digna para a sociedade a partir da autogestão, da pedagogia popular, entre tantas outras para dar continuidade a um processo de transformação de um país que estava desmoronando à custa da precariedade de nossos territórios e de nossas vidas.”.
La dignidad
Neste momento, o foco da luta popular é a liberdade das pessoas que foram presas por protestar contra o governo. No dia 28 de julho aconteceu uma manifestação no Palácio de La Moneda (sede da presidência do Chile) reivindicando a liberdade para os manifestantes. Sobre esta questão, Valentina explica a sua importância:
“Acredito que vai ser um momento muito complexo porque a Coordinadora 8M, a Coordinadora 18 de octubre, as organizações de presos políticos, e constituintes que vêm dos movimentos sociais, declararam que nenhuma redação da Constituição pode ser iniciada sem primeiro libertar os presos políticos. […] A condição de impunidade como política de Estado constitui uma ferida histórica que se ativa na memória e no diálogo entre o passado e o presente. Portanto, voltando à questão, acredito que as manifestações vão continuar nas ruas, mas também haverá mais repressão. Piñera em sua Conta Pública assinalou em diversos momentosque proporcionará mais recursos para a segurança nacional, que combaterá fortemente o “terrorismo” na Araucanía [uma das 16 regiões do Chile] e uma longa lista de medidas para exercer o terrorismo de Estado no âmbito jurídico. Parece-me que a possibilidade de negociar a libertação de ativistas depende de como a esquerda se configura neste cenário para gerar um poder popular que volte a colocar o governo em xeque.”
A conquista dos espaços institucionais é importante, não suficiente para romper e mudar a lógica de organização de um território. “A institucionalidade nunca vai resolver o desenvolvimento das nossas vidas em sua particularidade. O que uma constituição pode fazer é garantir certos direitos e estabelecer que somos todes iguais perante a lei de forma eficaz e proteger nossos territórios, restabelecer a água para os povos, talvez nacionalizar recursos, começar uma redistribuição, reparar.”, explica Camila.
O feminismo de quais ruas?
O feminismo é um movimento que amplia e resgata perspectivas que rompem esses espaços de institucionalidade ao mesmo tempo que também se ocupa deles para gerar transformações. Como exemplifica Valentina:
“Se você me perguntar neste momento, acho que mais do que me sentir representada peles eleites, me sinto representada pelo nosso movimento, porque se chegamos até aqui é por causa de uma luta de muitos anos e que hoje nos permite dizer “essa mudança nós estamos fazendo” e no meu caso, de um feminismo dos povos. Por isso me representam mais as ideias que buscamos defender, o feminismo de classe e antirracista, o feminismo que busca alcançar um Estado Plurinacional. E aqui entra também o trabalho da Coordenadora 8 de Março, e a entrada de Alondra Carrillo como constituinte, que é minha companheira ativista e que considero ter um papel fundamental para disputar a redação da Carta Magna a partir da posição política que mencionei.”
Na visão de futuro de Camila, esses aspectos constitucionais estão sendo ultrapassados por uma perspectiva mais ampla de modos de vida.
“A dignidade é algo que acontece na vida das pessoas, a qualidade de vida como o direito de escolher a nossa vida e sinto que o feminismo trouxe isso como uma questão, como um presente e como uma luta. Então, nessa perspectiva, me parece que o feminismo contribuiu com uma leitura que questiona justamente o espaço de construção da nossa vida e como queremos que ela seja. Como queremos que sejam os nossos vínculos, a relação com nosses corpes, como imaginamos a vida em coletivo, como é viver na cidade, nas zonas de sacrifício, falar do medo, falar do injusto, das brechas, dos medos que vivemos todos os dias, sobre como nossas subjetividades são construídas a partir do que um sistema que se impõe sobre nós. Acredito também que, assim como o feminismo, a organização social em geral, independentemente de sua tendência teórico-político-sensível, se desenvolvia de forma paralela e começou a erguer sua voz e presença.”
A Nova Constituição que está sendo escrita passa a valer em todo o Chile a partir de 2023. Durante todo este processo, algumas fontes bacanas para acompanhar a discussão são: Coordinadora Feminista 8M Stgo, a Convención Constitucional e a Coordinadora 18 de octubre. As entrevistas com Valentina e Camila foram feitas em junho e julho de 2021 e podem ser lidas na íntegra, em espanhol, na nossa página: https://basuras.medium.com/