As mulheres que me querem forte
Enquanto o patriarcado tenta silenciar e invisibilizar, são as mulheres — colegas, professoras, parceiras — que constroem redes de afeto, confiança e potência coletiva.
Por toda a minha trajetória profissional, em momentos chaves, existiram mulheres fortes que me quiseram forte: para isso, me abriram portas, me orientaram com rigor e generosidade, me ofereceram trabalhos importantes, me incentivaram com oportunidades concretas para que eu me desenvolvesse dentro da área acadêmica e artística.
Os homens, bem…os homens desempenharam papéis de formação e de estudos, mas esses quase sempre me quiseram, em minha vida profissional, fraca. Para eles eu não era uma pessoa inteira e com meus próprios desejos: eu era a atriz que eu formei, a dançarina que eu moldei, a cantora que vai embelezar a minha obra, a produtora que vai resolver os perrengues, a professora que vai me ensinar algo que preciso.
Depois, quando eu fui envelhecendo e alcançando espaços de poder que os homens ou a lógica patriarcal dominavam (como uma igual e não como subordinada) fui ameaçada, cancelada, demitida e hostilizada sempre que necessário. Nenhuma professora mulher que eu tive quis me engarrafar como um produto de seu ego: todas me ensinaram muito mais do que técnicas, práticas e conteúdos.
Elas me contaram sobre como organizaram suas vidas, como puderam manter uma trajetória dentro de um mundo caótico, me explicaram quanto eu poderia cobrar por um trabalho, compartilharam vivências e percepções de como ser mulher e artista em um contexto muito concreto e presente.
Elas foram os meus modelos reais, foram mulheres que eu amei. Toda a atenção que eu prestei nelas, essas mulheres que tinham na maior parte das vezes dez ou vinte anos a mais do que eu, era uma forma de encontrar espelhos para me enxergar.
Ninguém da minha família é do campo das artes e isto me levou, inconscientemente, a ver como guias as minhas professoras e amigas, as minhas colegas artistas ou pesquisadoras. Aprender e conviver com elas era compreender melhor a vida que eu estava escolhendo.
As mulheres que me querem forte foram aquelas que convidaram meus trabalhos para apresentar por acreditar na sua potência, que festejaram a minha existência profissional como uma conquista de muitas, que fizeram parcerias horizontais em direções cênicas ou projetos pedagógicos. Foram também as que me abriram portas de ambientes de trabalho novos e desafiadores, que me incluíram em suas narrativas sobre teatro, que não tiveram medo de expressar admiração e orgulho por aquilo que produzo com o esforço de meu trabalho.
Em um mundo regido pela lógica do matriarcado, a competição é trocada pela colaboração, a existência individual é amplificada pela consciência da existência coletiva, a ganância é substituída pela noção de que toda a comunidade precisa estar bem para que a alegria possa minimamente circular e inspirar. A lógica do cuidado e o pacto pela não violência é base e não bônus especial.
Já estive muitas vezes prestes a narrar as violências que vivi no campo profissional. Não foram poucas as vezes em que vivi situações de verdadeiro terror e depois compreendi que eram violências de gênero no trabalho. Que eu não estava errada e nem era eu que provocava aqueles comportamentos.
Hoje já não sinto mais vontade de relatar publicamente esses traumas, expor as pessoas, desenterrar os meus mortos. Prefiro me dedicar a pensamentos de mudança e de transformação e deixar essas narrativas para a terapia. O espaço da minha mente e do meu imaginário é sagrado e, hoje em dia, tenho cuidado com quem ocupa essa parte de mim.
Demorei muito tempo para acreditar que eu não precisava passar por certas situações repetidamente para ter uma carreira profissional sólida. Que eu poderia trilhar outros caminhos, que eu poderia me afastar de situações insalubres, que eu poderia dizer não e ter a segurança que eu não seria prejudicada por isso (ou, pelo menos, poderia bancar a retaliação que viria).
Demorei estes anos todos para entender a real consequência de uma dessas retaliações do patriarcado, que é a invisibilidade. Quando comecei a frequentar meios onde mulheres de teatro falavam para mulheres de teatro, as artistas mais velhas sempre denunciavam a sistemática invisibilidade de seus trabalhos e por isso criaram redes como The Magdalena Project, que eu vivenciei entre os anos de 2008 a 2016, e muitas outras redes que deram origem a outras tantas redes.
O ajuntamento de mulheres nas artes foi crescendo e fomos aprendendo que o apoio mútuo não era apenas uma estratégia de produção artística, mas também de acolhimento afetivo, uma forma de compreender que aquilo que nos afetava era estrutural: um trauma coletivo.
Acredito que eu tenha vivido uma trajetória muito mais visível e, por isso, mais estável que muitas artistas mulheres antes de mim, em meu contexto. Mas, percebo claramente uma coisa: quem me convida para entrar em um novo território com um sorriso largo no rosto são sempre mulheres. Porque o patriarcado, na maioria das vezes, está tão atolado em seu próprio umbigo que nem nota as presenças ao seu redor. Apenas nota aquelas que podem agregar algo ao seu status. Independência e horizontalidade, jamais. O pior é que nem é um ato de maldade calculada: eles simplesmente não possuem os olhos de ver o outro.
Ando muito interessada em quem me enxerga, em quem tem desejo de estar comigo. Cansei da lógica do amor bandido na vida profissional: ficar dando pérolas a quem não quer, insistir em sonhar sonhos que não são meus e almejar conquistas que nunca chegarão porque o sistema é falho e a vida é aleatória.
Reorganizar os conceitos de potência e poder no campo profissional é dar espaço para que outras lógicas possam acontecer. Retirar-se do centro, permitir-se misturar com ambientes coletivos, compreender o seu pequeno papel no todo. Cuidar e ser cuidada, ver e ser vista, em um ambiente mínimo de reciprocidade.
Os invisíveis são maioria: as mulheres, as pessoas racializadas, os pobres, os imigrantes, os refugiados, a população LGBTQIA+, as pessoas com deficiência, entre tantos outros. Em meio a esse mar substancial de pessoas, não somos invisíveis.
Podemos buscar compreender através da empatia e aprender juntas a como desenhar formas de não depender dos olhares legitimadores de um velho mundo em colapso.
Podemos criar nossos próprios marcos civilizatórios, podemos sonhar nossos mundos possíveis como bem nos tentam ensinar os povos originários. Podemos decidir a quem queremos legitimar e que nos legitime, mesmo que isso custe abrir mão de projeções de futuro que nem sabemos quem inculcou na gente. Pois não somos realmente invisíveis: apenas existe um sistema que não nos enxerga mas, isso é na verdade, uma falha dele.