Nos últimos meses do ano passado li a tetralogia da escritora italiana Elena Ferrante dedicada à história de uma amizade entre duas mulheres que dura toda uma vida. O primeiro livro, intitulado A Amiga Genial, inicia a narrativa na infância pobre e violenta em um subúrbio de Napoli de duas meninas de seis anos de idade, Lina e Elena. A saga termina aos sessenta, no último livro, depois de todas as reviravoltas de uma amizade entre duas mulheres no período de 1950 até meados dos anos 2010, no seio do fortalecimento do movimento feminista italiano.

Bem, o primeiro atravessamento desses livros em minha vida é que a indicação do livro veio através de uma amiga genial, uma companheira de saga nesta leitura e na vida que conheço desde os meus dezessete anos de idade e que considero uma irmã. Segundo, a história de Ferrante me comoveu profundamente porque, de forma despretensiosa e sem qualquer moralismo ou bandeiras, delineia com toda sua crueza e beleza a importância fundamental de ter amigas mulheres nessa vida.

Há alguns anos venho me perguntando se todas as músicas de amor que ouvi não formaram em mim uma espécie de imaginário irreal sobre a centralidade da relação homem-mulher (ou amorosa, no caso das relações homoafetivas) na vida de uma pessoa. No caso da história das mulheres, realmente o casamento durante muitos séculos foi a única realização possível de uma mulher em sociedade: a conexão contratual com um homem dava status, condições financeiras, possibilidade de ter uma família e ser aceita em uma sociedade na qual mulheres livres, sem vínculos e principalmente com pensamento independente representaram sempre uma ameaça grave ao sistema social. Por isso conseguir um casamento bom era tão importante na vida de uma mulher. Virginia Woolf quando escreve Um teto todo seu, usa como ponto de partida sua indignação com o fato de não poder entrar desacompanhada na biblioteca da Universidade, que era restrita ao uso dos homens. Uma mulher sozinha e livre, fuçando nos livros e ganhando autonomia de pensamento? Nem pensar. E isso não faz nem cem anos.

Minha mãe tem duas irmãs, e entre brigas, casamentos falidos, filhos e alegrias dessa vida, elas são unidas de uma forma especial, como se tivessem um pacto secreto. Quando eu era pequena as via falando na língua do “p” para que nós crianças não entendêssemos o que contavam umas às outras. E eu, em meu imaginário de menina, quis muito ter amigas-irmãs que um dia falariam nessa língua desconhecida e mágica entre si, com cumplicidade e amor. Não tenho irmãs de sangue. Acho que por isso saí pelo mundo escolhendo minhas próprias irmãs adotivas, mulheres fortes e incríveis que acompanham de perto ou de longe tudo o que me acontece.

No início deste ano recebi um e-mail de uma diretora teatral galesa, Jill Greenhalgh, que é a criadora do The Magdalena Project, rede internacional de teatro feito por mulheres da qual eu minhas três outras amigas geniais (Marisa, Gláucia e Monica) somos parte através de um projeto fundamental em minha vida chamado Vértice Brasil (www.verticebrasil.org). Dear Women Friends…começava a mensagem. Era uma mensagem para todas as amigas mulheres de Jill, ao redor do globo terrestre, se perguntando se ainda estaríamos conectadas, lembrando que em 2018, no Reino Unido completa 100 anos da conquista do direito ao voto feminino. Em determinado momento ela pergunta: will you still need me? Vocês ainda precisarão de mim já que agora estou envelhecendo e me transformando? No exato momento em que li, quis atravessar o oceano e dar um abraço forte nessa mulher. Quis que ela soubesse, assim como muitas outras mulheres que me ensinaram, que o legado das amigas, mães, tias, avós, professoras e mestras é um legado vivo em mim, que me alimenta e fortalece todos os dias. Que ter amigas significa ter laços profundos de companheirismo e amor.

Uma vez fiz uma série de pesquisas para um trabalho sobre a chamada “terceira idade”. Li uma autora chamada Mirian Goldenberg, que em um de seus livros que já não me recordo qual, aponta que na maioria dos casos quem segura as pontas das barras de envelhecer, no caso das mulheres, são as amigas. Não são xs filhxs ou os maridos que representam aquela garantia de não estarem sozinhas quando envelhecem: são as amigas que muitas vezes acompanham no médico, que conversam, que frequentam os mesmos locais, que tecem uma rede de cumplicidade e amorosidade compartilhando as mesmas questões. Esses dias, acordei e tinha uma mensagem-corrente no whatsapp mandada pela minha mãe, saudando todas as amigas e irmãs que são companheiras de caminhada, reforçando a importância desses laços. Ou seja, parece que desde que o ano virou, tenho ouvido uma espécie de chamado de celebração pelas amizades de mulheres, reforçando o refrão das marchas “companheira me ajude, eu não posso ficar só, sem você eu ando bem, mas com você ando melhor”.

A conquista da palavra sororidade nos últimos anos me parece significativa (mesmo que um tanto banalizada nos últimos tempos). Soror significa irmã em latim, assim como frater, seria irmão. Um termo que designa a irmandade entre mulheres não funda nada de novo, mas dá nome e contorno, e por isso evidência, a esse tipo de relação tão especial. A irmandade entre mulheres é tão antiga quanto as próprias mulheres, que sempre criaram e mantiveram rituais que celebrassem esta conexão tão específica, cuidando umas das outras e protegendo seus legados.

Acho que gostei muito do livro de Elena Ferrante por admitir que amores vêm e vão, filhos e filhas crescem, o corpo se modifica, o trabalho acaba ou muda, mas a amizade pode ser um daqueles eixos centrais na vida de qualquer pessoa. Porém as amizades não são um mar de rosas: são doloridas, paradoxais, às vezes distantes, às vezes muito próximas, podem não ser eternas e são tão complexas quanto a vida. Mas esse senso de conexão e responsabilidade por outros seres humanos que não somente aqueles da família nuclear (maridos e filhos) dão às mulheres novas formas de existir e construir suas histórias, não apenas desempenhando o velho papel de cuidadoras e mantenedoras do lar, mas abrindo um espaço no qual podem ser cuidadas e abraçadas por outras mulheres que aceitam dividir as responsabilidades, risadas e desastres desse caminhar juntas.

Infelizmente um dos legados perversos do machismo para os homens é essa barreira que muitas vezes impede uma abertura emocional para fazer amizades próximas. Enquanto nós mulheres somos bastante estimuladas a sermos abertas e emotivas, os homens ganharam este legado perverso de não expressar seu amor e apreço por outros homens (e por amigas mulheres), o que gera um dado impressionante: artigos científicos norte-americanos indicam que o fumo ou a obesidade não são os grandes vilões da depressão e mortalidade entre homens de meia-idade norte-americanos, mas sim, a solidão. Para muitos homens falar sobre seus sentimentos ou procurar terapia é simplesmente um atestado de incompetência de sua “virilidade”. Nessas horas, o machismo também mata.

Não falo na língua do “p” com as minhas amigas. Mas existe uma língua em comum que criamos que compartilha as preocupações, alegrias, dúvidas e delícias de atravessar a vida juntas. Posso passar meses sem falar com uma delas, mas quando falamos é como se tivéssemos acabado de nos ver. São relações que me alimentam. É como uma espécie de corrente cúmplice, que ao pensar nela me deixa mais calma. Pouco a pouco percebo que as gerações passam, e seguimos criando nossas redes invisíveis, acompanhando as filhas, sobrinhas, alunas ou netas que vêm, avós e mestras que vão, contando nossas próprias histórias e protegendo o legado de luta e ternura de tantas que vieram antes de nós. Sim Jill, ainda precisaremos de você. De todas, nem uma a menos. Cada vez mais e sempre.

 

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  • Barbara Biscaro

    Barbara Biscaro é atriz/cantora e pesquisadora nas áreas do teatro e da música. É Doutora em Teatro pela UDESC e coorden...

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