E disse o Ministro da Saúde, em resposta às mortes maternas em decorrência da Covid-19: “atrasem a gravidez”.

Este é o mesmo Estado que só permite o aborto legal em três situações mas que, mesmo assim, mulheres e meninas que têm esse direito reprodutivo garantido são tratadas como se tivessem realizando um ato criminoso, como vimos no caso da menina de 10 anos do Espírito Santo.

Os direitos sexuais e reprodutivos vivem em constante ameaça nos contextos de crises humanitárias e isso se agrava quando se associa com estados negacionistas como o Brasil, que tem como principal agenda o retrocesso e a violação dos direitos das mulheres, da população negra, dos povos indígenas e da população LGBTQ+.

Após a declaração Organização Mundial de Saúde sobre o início da pandemia do novo coronavírus, as políticas públicas de saúde global foram direcionadas para a contenção da Covid-19. Ainda que a organização tenha considerado o aborto como serviço essencial, um mês após o início da pandemia isso não foi levado em conta por países como o Brasil. O país registrou uma redução dos serviços de atenção ao aborto legal, precarização na atenção e cuidado do pré-natal e baixa oferta de insumos e métodos contraceptivos, uma realidade vivenciada em diversas partes do mundo.

Nos vários países da América Latina, houve um aumento dos partos extra-hospitalares, chegando a 30%. Na Argentina ocorreu um aumento de 536% das consultas telefônicas sobre a interrupção legal da gravidez durante a pandemia. No Brasil, pesquisas apontaram redução de 55% dos serviços de aborto legal e o aumento significativo das mortes maternas. Segundo o Fundo de População das Nações Unidas, estima-se que 12 milhões de mulheres podem não ter conseguido acessar os serviços de planejamento reprodutivo em consequência da pandemia. Como resultado dessas interrupções, presume-se que podem ter ocorrido cerca de 1,4 milhão de gravidezes indesejadas em países de média a baixa renda.

E foi diferente em algum momento? O Brasil nunca conseguiu oferecer uma atenção à saúde sexual e reprodutiva de forma integrada, equitativa e universal, tudo agora só adensou.

A pesquisa Munic/IBGE/2018 apresenta as ofertas dos serviços de saúde reprodutiva dos municípios do Brasil e o que temos é: 96,1% ofertam o serviço, mas apenas 52,1% dispõem do dispositivo intra-uterino (DIU), assim como apenas pouco mais da metade ofertam a pílula do dia seguinte.

A Pesquisa Nacional de Saúde/IBGE (2013) nos diz que as regiões do país têm um gradiente entre as mulheres em idade reprodutiva que utilizam algum método contraceptivo, sendo as mulheres do Norte (51,8%) as que têm menor proporção e as mulheres do Sul (73,6%) as que mais usam. Como consequência, as maiores taxas de gravidez na adolescência estão nas regiões Norte e Nordeste do Brasil.

Para isso, acionamos a lente da interseccionalidade e identificamos que as iniquidades no acesso são marcadas pela raça e territórios das mulheres.

A distribuição dos serviços está concentrada no que chamamos de Metrópoles e pode ser observada em várias escalas sudeste/sul, capitais, urbanos e centros; no extremo, nos “vazios assistenciais”, estão as regiões norte/nordeste, interiores, periurbanos/rurais e periferias (que chamamos de Periferias). Essas escalas mostram a correlação entre os territórios mais racializados e generificados (marcados pela discriminação de gênero) com os níveis mais altos de vulnerabilidades no que se refere ao adoecimento e mortes maternas em decorrência do novo coronavírus, tanto de forma direta como indireta, assim como no acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva.

A vacinação de gestantes segue no mesmo ritmo do início da pandemia, quando não havia protocolo para cuidados específicos. Então, as mortes por causa da Covid-19 começaram a acumular e o Brasil assumiu rapidamente o topo do ranking de países onde mais se morre gestantes contaminadas com o vírus – pretas mais que as brancas por falta de acesso aos serviços de média e alta complexidade. Por isso, temos a atuação de diversas/os ativistas, pesquisadoras/es, redes de profissionais de saúde e parlamentares no engajamento para que as gestantes acessem o direito à vacinação, fazendo parte do grupo prioritário.

Acontece na pandemia, mas é sobre o antes. Mulheres negras morrem duas vezes mais por causas relacionadas à gravidez, ao parto e pós-parto que as brancas, por isso não alcançamos os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, em 2015. Mulheres morrem por conta do racismo institucional. Mulheres morrem por aborto inseguro. Morrem pelas diversas barreiras impostas e não chegam aos serviços, morrem de hemorragia. Mulheres não têm acesso a métodos contraceptivos. As mulheres morrem porque o avanço nas políticas de saúde das mulheres no ciclo gravídico-puerperal não é suficiente para evitar essas mortes, porque a implementação dessas políticas não ocorre de forma interseccional considerando o incremento do racismo e das desigualdades que conduzem, constroem e atravessam essas mortes.

A pesquisadora Jackeline Romio (2019) classifica a morte materna causada pelo aborto inseguro como feminicídio. As políticas de controle do corpo e da sexualidade da mulher, cuja expressão mínima é a morte por aborto, levam ao que ela denomina de feminicidio reprodutivo. Acredito que não só a morte materna por aborto é uma expressão do feminicidio reprodutivo, mas as mortes maternas são a resposta do Estado em relação à vida das mulheres, resultado que, por sua vez, é racista patriarcal.

O que precisamos pensar é: quando as mulheres vão parar de morrer de morte materna?

Lembro de minha mãe. Certa vez, estava com ela no medico, abri o computador e comecei a escrever sobre Alyne Pimentel e ela me perguntou o que estava escrevendo, eu disse que era a história de uma jovem que morreu de morte materna, ela me perguntou: “ainda se morre disso?”

É isso. O que faremos neste tempo que se apresenta novo, mas com velhos males? Ou nossa agenda de direitos reprodutivos se consolida por meio da justiça reprodutiva ou ficaremos presas no looping das desigualdades, violências e mortes.

Avante mulheres, que se inicie um novo ciclo com todas nós dentro, é pela vida das mulheres.

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  • Emanuelle Goes

    Emanuelle Goes é doutora em Saúde Pública com concentração em Epidemiologia (ISC/UFBA). Realizou Doutorado Sanduíche na...

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