O direito à interrupção da gravidez talvez seja a pauta mais complexa do feminismo. Por ser guarda-chuva de outras tantas, como maternidade, dignidade, direito à infância, racismo e revitimização, é ferozmente disputada por movimentos sociais e políticos.

No contexto atual do Brasil, em que o aborto somente é permitido pela lei penal em casos de estupro, risco de morte para a gestante e anencefalia fetal, há agentes políticos que trabalham incansavelmente para que até mesmo essas possibilidades absurdamente restritas sejam extintas.

Na discussão da pauta, temos de um lado grupos de pessoas que lutam para que essa seja uma conversa de toda a sociedade, que respeite os direitos de todos e seja fundamentada em amplas pesquisas e argumentos científicos. De outro, correntes ideológicas baseadas em crenças pessoais e religiosas, para quem é mais vantajoso promover censura e silenciamento sobre o tema, enquanto atacam a lei vigente e criam mecanismos para que ela não seja cumprida. 

Pois não basta que direito ao aborto seja extremamente limitado na lei brasileira, é preciso exterminar todas as possibilidades de interrupção da gravidez. É preciso fazer com que gestações de risco sejam levadas a termo, que vítimas sejam obrigadas a conviver pelo resto da vida com a lembrança da violência sexual, que por si só é devastadora.

É preciso que mulheres e meninas sejam penalizadas pelo crime de “permitir” que seu corpo fosse violado, ainda que sob violência ou grave ameaça, ainda que tenham menos de catorze anos. Que carreguem o fardo de uma maternidade precoce ou indesejada e suportem as consequências até o dia de sua morte. 

Para as que ousam querer escolher o que fazer com o próprio corpo e a própria vida, que sejam privadas da liberdade de ir e vir e taxadas com o rótulo de “homicida”. São essas as “soluções” compreendidas como adequadas para quem defende a aprovação de projetos de lei como o 1904/24, que equipara a interrupção da gestação após 22 semanas ao crime de homicídio, ainda que resultante de estupro.

A urgência na tramitação do projeto teve como finalidade acelerar o processo e atropelar passos indispensáveis na promulgação de uma lei tão nociva, como a discussão aprofundada do tema e a consulta da população. Por isso, proponho aqui algumas questões para refletirmos sobre a origem e, especialmente, os objetivos de posicionamentos que promovem a criminalização do aborto sob qualquer circunstância.

1 – Quem faz aborto não vai para o céu?

A crença pessoal tem um peso importantíssimo na opinião das pessoas sobre a interrupção da gravidez. Crenças sobre quando começa a vida, sobre a existência ou não de “alma”, dentre outras tantas.

Porém, o primeiro e mais importante ponto a ser destacado é o seguinte: Enquanto discutimos se a gestante que interrompe a gravidez é boa ou má pessoa e se somos “a favor ou contra” o aborto, uma intensa agenda de retrocessos avança no país, com uma série de medidas antidemocráticas, parte de um projeto de poder que tem como finalidade o controle absoluto dos corpos de pessoas que gestam.

Pensemos: A descriminalização do aborto não é uma decisão que obriga pessoas a abortar. Do contrário, a medida garante o direito de escolha de quem quer e pode gerar uma criança e também o de quem não quer ou não pode.

Em contrapartida, a criminalização das hipóteses que hoje são legais, juntamente com uma forte onda de perseguição política e precarização cada vez maior dos poucos serviços de saúde que realizam o procedimento no Brasil, são artifícios que, ao confundir crenças individuais com regras sociais, retiram direitos e colocam em risco a vida de meninas e mulheres. 

2 – Mas o Estado não é laico?

Hoje o debate está pautado por argumentos morais e religiosos que na base do grito sobrepõem as evidências científicas sobre o assunto. Por isso, é importante sabermos que a Constituição Federal, em seu art. 5º garante a inviolabilidade do direito de crença, assim como prescreve que ninguém pode ser privado de direitos em razão de crença ou religião.

Ou seja, dizer que o estado é laico não é dizer que é ruim ou proibido ser cristão ou espírita, por exemplo, mas que todas as crenças (ou mesmo a ausência delas) devem ser respeitadas e o que é proibido para uma religião não pode ser para toda a sociedade.

Escolhas individuais não devem ter o poder de retirar direitos fundamentais. Crenças religiosas não podem ser impostas pela legislação, menos ainda pela via da criminalização, pois tal ato configura violação dos direitos constitucionais de quem não escolheu ter sua vida disciplinada por dogmas religiosos específicos.

A prevalência do argumento religioso tem como objetivo jogar com as emoções das pessoas, desqualificando o debate e limitando a discussão ao que diz a crença de cada um.

Somado a isso, a intensa pregação de que sexualidade é um tema a ser tratado apenas no âmbito privado, chegamos a um ponto em que não podemos sequer falar sobre o assunto, pois as palavras são censuradas pelos algoritmos das plataformas e muitas pessoas acabam optando por evitar a discussão de “questões espinhosas” como essa.

Em consequência, ficam soterradas as estatísticas que mostram que o aborto é um problema de saúde pública que está matando gestantes, além de criminalizar uma parte bastante específica da população afetada pelo racismo e classismo impregnados no sistema. 

3 – Uma mulher que aborta deve ser punida e presa?

A justificativa do PL 1904/24 diz que o dispositivo que trata do aborto legal no Código Penal não se traduz em um direito, mas em uma excludente de ilicitude, ou seja, as pessoas não teriam direito a praticar um aborto nos casos de estupro ou risco de morte à gestante, mas, caso praticassem, o ato não seria ilícito em razão da excludente.

O argumento para esse entendimento se apoia no fato de que até 1989 não havia no Brasil serviço público de saúde que oferecesse a interrupção da gravidez dentro das hipóteses dispostas no Código Penal.

Porém, assim como a mera previsão legal não torna um direito automaticamente concretizado, a ausência de políticas públicas não executadas pelos aplicadores da lei não pode significar sinônimo de ausência do direito. Pois o que significa na vida real a existência de uma excludente de ilicitude sem a prestação do serviço público de interrupção da gravidez?

Significa que para quem encontrasse meios de realizar o procedimento dentro das hipóteses previstas na lei, a prática não configuraria crime. E se não há oferta de serviço público, o que geralmente é preciso fazer? Pagar. Ou seja, não é que o direito não esteja previsto na lei penal, apenas o acesso a esse direito que não era garantido para todas. 

O projeto de lei menciona ainda que a maioria dos profissionais de saúde se recusam a realizar a interrupção após 22 semanas, mas convenientemente deixa de fora a enorme pressão exercida por líderes políticos, religiosos e entidades de classe que perseguem e criminalizam todas as iniciativas que visam facilitar o acesso ao aborto legal ou mesmo trazer a pauta para discussão pública através da educação e da informação.

Assim, faz parecer que a única questão em discussão é a idade gestacional, mas quando analisado em conjunto com outras estratégias de inviabilização do aborto legal no Brasil, é possível perceber que o objetivo é impedir o acesso de todo e qualquer tipo de interrupção da gravidez.  

São inúmeros os fatores que impedem ou atrasam a concessão do pedido de interrupção, como a cultura do estupro, um obstáculo que faz com que vítimas deixem de denunciar violências sexuais por medo da revitimização, somada à dificuldade para encontrar quem aceite realizar o procedimento sem fazer exigências ilegais (como obrigar a mãe a ouvir o batimento fetal) e julgamentos morais.

Com isso, a gestação vai se perpetuando no tempo, muitas vezes ultrapassando as 22 semanas, que com a alteração legislativa se tornará prazo limite para que o ato não seja crime equiparado ao homicídio. A consequência direta disso é que, na prática, o exercício desse direito será impossível para muitas gestantes, em especial meninas de 0 a 13 anos, que correspondem a 6 de cada 10 vítimas de estupro, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

As mesmas pessoas que querem proibir a prática do aborto pregam também pela proibição da educação sexual nas escolas, deixando crianças e adolescentes mais suscetíveis a sofrer violência sem ter o conhecimento necessário para reconhecer o que está acontecendo e reportar a algum responsável.

Considerando que a maioria desses casos acontece no âmbito do lar e da família, tratar temas como sexualidade e gravidez como tabu é uma ótima estratégia para confinar graves violências sexuais no segredo do lar e proteger quem as pratica com o escudo do silenciamento.

4 – Quem vai cuidar das nossas crianças?

No Brasil, mais de 12,5 mil meninas entre 8 e 14 anos foram mães em 2023, estatística que compreende majoritariamente meninas negras e de baixa renda. Tais dados resultaram em uma recomendação da ONU pela legalização do aborto e o reforço de medidas para combater o alto índice de mortalidade materna no país. 

Para meninas de até 14 anos, a relação sexual, consentida ou não, é violência efetiva e a interrupção da gravidez é um direito. Cabe dizer ainda que quando a vítima é uma criança, levar a gestação a termo pode representar alto risco de morte.

Os inúmeros projetos políticos que objetivam a proibição do aborto sob o argumento de que estão lutando por um direito à vida, em geral nada dizem sobre políticas públicas que apoiem e possibilitem o exercício digno da maternidade para aquelas que já são mães, silenciam sobre os altos índices de casamento infantil ocorridos no país, assim como nada propõem para reverter as estatísticas epidêmicas de violência sexual praticada contra crianças e adolescentes.

Querem apenas proibir sem sequer considerar as consequências disso porque a vida que importa é apenas a hipotética. Há crianças reais que não somente permanecerão desprotegidas por essa lei, como serão criminalizadas por ela. 

Não é possível ignorar a hipocrisia que reside em sermos uma sociedade que tensiona superproteger a suposta vida de um aglomerado de células que está dentro do útero, enquanto presenciamos inertes o abandono completo das milhares de crianças já nascidas que crescem e convivem diariamente com a fome, a violência, a pobreza e tantos outros problemas causados pela desigualdade.

Sem falar na vida da pessoa que está gestando e que será obrigada a parir e cuidar, sofrendo uma consequente piora na qualidade de vida, seja pelo aumento dos gastos, seja pela diminuição de renda, visto que o mercado de trabalho capitalista tem por hábito tratar mulheres que são mães com ainda mais hostilidade.

Cabe aqui ponderarmos o que seria um direito à expectativa de vida versus o direito à vida, que incorpora outros tantos direitos. Não basta sobreviver, respirar, existir. É preciso ter saúde, dignidade, moradia, educação… Como zelar por expectativas de direitos quando sequer conseguimos garantir o mínimo para as pessoas que já nasceram? 

5 – Quem ganha com a criminalização?

A disputa pela legalização do aborto é uma disputa pelo tempo, quanto melhor o acesso à informação e aos serviços de interrupção da gravidez, menor o sofrimento. Mas hoje, mesmo para os casos em que o aborto é legal, estratégias de ganho de tempo são aplicadas pelo movimento antiaborto para atrasar o procedimento até que a interrupção seja inviável. Isso é de uma crueldade sem medida.

Além de prejudicar meninas e mulheres, a criminalização e o silenciamento da pauta sobre direitos reprodutivos e sexualidade favorece estupradores, que seguirão cometendo seus crimes sem que ninguém tome conhecimento e, quando engravidarem as vítimas, serão elas que suportarão o ônus de gestar, parir e cuidar do fruto da violência.

6 – Então, o que fazer?

Em vez de debater o que quis dizer o legislador de 1940, deveríamos estar olhando para as recomendações da Organização Mundial de Saúde e para as estatísticas de países que descriminalizaram a prática do aborto e tiveram reduzidos os números de mortes maternas e até mesmo da realização do procedimento. 

Uma sociedade que combate a cultura do estupro e a violência sexual de forma adequada e adota políticas públicas que protegem e apoiam a vítima em vez de culpabilizá-la e revitimizá-la, tem o número de abortos reduzidos, porque a violência também diminui. Uma sociedade de pessoas bem-informadas sobre sexualidade e direitos reprodutivos faz crescer as denúncias e tira a proteção do véu do silêncio que encobre os agressores.

Além disso, é importante entender que a criminalização não impede que os procedimentos de interrupção sejam realizados, só impede que sejam feitos de forma segura, com métodos adequados. As mulheres realmente afetadas pela criminalização são as que dependem do serviço público, são as crianças e adolescentes que não tem como buscar atendimento particular.

A clandestinidade dessa prática causa apagamento de dados e deixa de fornecer estatísticas que poderiam ajudar no combate à violência sexual e na ocorrência de gestações precoces ou indesejadas.

Não faz sentido penalizar uma pessoa que foi estuprada, com pena prevista maior que a do agressor, pela sua escolha de interromper as consequências da violência e seguir com a vida. Pessoas que gestam não são incubadoras humanas, são pessoas, que também têm direito a uma vida digna, com saúde e respeito. 

O que vivemos hoje é uma nova versão da famigerada caça às bruxas, cujos interesses, assim como na Idade Média, vão para muito além da crença religiosa. As “bruxas abortistas” de hoje, perseguidas e criminalizadas pelos movimentos antiaborto, são aquelas que lutam por meios de assegurar sua liberdade, dignidade e autonomia, que se recusam a caber nos limites que são impostos e que demandam nada menos que igualdade de direitos e liberdade para decidir o que fazer com a própria vida.

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  • Lívia Reis

    Especialista em Ciências Penais, co-fundadora do Coletivo Nós Seguras e do Projeto Transversais, feminista, abolicionist...

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