A Barbie empoderada também tem medo de ser estuprada
Ao sair da Barbielândia, a boneca descobre como é viver tendo que lidar com assédios e violações.
Como não poderia deixar de ser, o tema escolhido para a coluna desse mês é a Barbie. Afinal, como não falar de um filme tão esperado, que bateu recordes de bilheteria pouco tempo após a estreia? Não se preocupe, essa não será mais uma reflexão sobre o quão feminista é a boneca, entretanto, é difícil assistir e não pensar nas experiências de mulher real que a personagem passa a viver quando decide atravessar o caminho da Barbielândia até o nosso mundo e no quanto tudo aquilo nos é familiar. Ainda que de forma superficial, a história evoca assuntos que fazem parte da nossa vivência diária, como padrões de beleza, estereótipos de gênero e tudo mais que compõe o sistema sexista que estrutura o lado de cá, inclusive a cultura do estupro.
Há uma cena específica, logo após Barbie atravessar o portal entre os mundos, em que os homens olham para ela de um jeito que causa incômodo e insegurança, sentimentos que as mulheres que não vivem na Barbielândia conhecem muito bem. Em contrapartida, Ken parece estar muito feliz e satisfeito nesse mesmo momento. A impressão dele é oposta à da Barbie, aqui ele se sente seguro e admirado, enquanto ela se sente receosa e objetificada.
Logo em seguida Barbie sofre seu primeiro assédio: um homem surge do nada e lhe dá um apertão nas nádegas, o que a faz reagir com um soco e acabar sendo presa. Há ilustração mais nítida do que é ser mulher?
Na pesquisa para a elaboração do texto, digitei “Barbie” no google e brilhos cor-de-rosa explodiram na tela, que também ficou rosada. Nas notícias principais, uma manchete chama a atenção, mas não surpreende: “Homem é preso por suspeita de se masturbar em sessão de ‘Barbie’ em SP”. Em um filme feito para mulheres, com sessões lotadas de mulheres, não poderia faltar a importunação sexual nossa de cada dia, cena que se repete no nosso cotidiano e que Barbie experimenta já nos primeiros momentos de mundo real.
Dentre tantas coisas que acontecem na aventura da boneca e que a tornam mais próxima de humana, a primeira vez em que Barbie realmente sente o que é tornar-se mulher não é quando os pés tocam o chão ou aparece uma celulite, mas quando é devorada por olhares masculinos de modo a sentir constrangimento e medo.
É ali que Barbie sente na pele como é viver tendo que lidar com assédios e violações que não decorrem somente de violências propriamente ditas como a física, mas também do olhar, das palavras e dos gestos. Olhar não é crime, assoviar e murmurar certas palavras talvez também não seja, mas isso não significa que não dói.
Fora da Barbielândia, Barbie não só não pode ser tudo o que quiser, como tem um papel determinado a cumprir, que lhe é oferecido logo de início, ao adentrar o ambiente de cultura de estupro que habitamos e sentir as correntes (nem tão) invisíveis que nos aprisionam, como uma mensagem de boas-vindas que diz: “conheça o seu lugar”.
A Barbie estereotipada se percebe aqui fora exatamente como foi criada para nos inspirar a ser: um estereótipo de objeto de desejo, de boneca de plástico que pode ser moldada e usada de acordo com os interesses dos homens que dirigem a Mattel e o sistema capitalista sexista em que vivemos.
Quando Barbie literalmente coloca os pés no chão e caminha pelo mundo real, ela experimenta o que é viver no corpo de uma mulher real em um mundo que é estruturado para te diminuir, limitar e dominar, através da violência e do medo. Nessa experiencia a confiança da Barbie é rapidamente extirpada e dá lugar ao choro, à sensação de impotência e frustração.
Essa cena de poucos minutos expõe uma questão importante para mulheres que sejam fãs ou não da Barbie: não importa quão empoderada e independente você seja, em um mundo dominado por homens, sua posição na hierarquia social nunca será de igualdade, pois por mais mérito que tenha, não dá para superar esse “defeito incorrigível” de ser mulher, de figurar uma categoria de ser humano que é posta como limitada e inferior. Não é sobre você, é sobre compor uma estrutura social forjada na ideia de que aos homens pertencem os locais de poder (que não estão estritos às carreiras profissionais) e o espaço público, enquanto há forças concretizadas na forma de bonecas de plástico e estereótipos que tencionam nos manter em estado de confinamento físico, mental ou ideológico.
Mas a vantagem de não viver na Barbielândia é que, diferente de lá, os dias não são todos perfeitos, mas também não são iguais e sempre há possibilidade para a mudança. Assistir ao filme não vai revolucionar a luta feminista, mas o aprofundamento dos assuntos sutilmente pincelados, somado à prática de reflexão e, principalmente, de mobilização coletiva, pode ser um ponto inicial para o longo trajeto que precisamos seguir na busca por igualdade e na construção de um mundo diferente, não cor-de-rosa, fantasioso ou utópico, mas real, pés no chão, solidário e justo para todes.