Na última semana, o Superior Tribunal Federal, em julgamento histórico, votou por unanimidade a procedência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 1107, para excluir a possibilidade de que partes e procuradores invoquem o histórico sexual e o modo de vida da vítima no processamento dos crimes contra a dignidade sexual e de violência contra a mulher. A função principal desse julgamento é interpretar conforme a Constituição e fazer cumprir os dispositivos previstos no Código de Processo Penal que foram incluídos pela Lei 14.245 de 2021, conhecida como Lei Mariana Ferrer. 

A referida lei foi promulgada com o objetivo de coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e deixar explícita a obrigação de zelo da sua integridade física e psicológica por todos os sujeitos do processo, especialmente no que diz respeito aos crimes sexuais. A promulgação dessa lei também foi um marco na história da nossa legislação, precedido pela exposição no Intercept Brasil da audiência de instrução e julgamento em que Mariana Ferrer, que figurava como vítima em um processo de estupro.

Ferrer foi repetidamente desqualificada, objetificada e humilhada pelo advogado do réu, enquanto magistrado e representante do Ministério Público a tudo assistiam sem impedir que as ofensas continuassem.

Mas por que até hoje, em 2024, uma decisão como essa ainda é tão necessária? Por que mesmo considerando todos os avanços da nossa legislação e jurisprudência no que diz respeito à violência contra a mulher ainda precisamos de decisões de Tribunais Superiores que nada fazem além de estabelecer o óbvio: é preciso respeitar a dignidade da pessoa humana que figura como vítima naquela ação? Não parece óbvio que não é justo ou correto adotar como estratégia de defesa proferir ofensas à vítima até que o juiz se convença de que a credibilidade da palavra daquela mulher precisa ser questionada? Então por que esse tipo de argumento ainda é utilizado nos dias atuais, mesmo com tantos avanços, tantas conquistas? A resposta é simples: porque funciona.

Funciona porque a cultura do estupro nunca deixou de estar presente nos ambientes de atendimento a essas vítimas. Funciona porque o sistema de justiça criminal é estruturado para não reconhecer a mulher como sujeito de direito e dar ao homem que pratica violência contra ela todo o benefício da dúvida. Porque não é um sistema criado para nos proteger e que, apesar das novas leis e julgamentos históricos, ainda é marcado por raízes e práticas que não somente descredibilizam, mas criminalizam a palavra e o comportamento das mulheres.

Quando falamos do processamento de crimes sexuais, regra geral, do atendimento nos serviços de saúde até a conclusão do processo no judiciário, a mulher será incansavelmente questionada sobre onde estava, a que horas, o que estava fazendo no local, se bebeu, se interagiu anteriormente com o agressor, se comportou-se de maneira “promíscua”, se disse não “querendo dizer sim”, se reagiu, se foi incisiva na negativa, se gritou por ajuda, por que não há marcas de violência, por que demorou para denunciar, enfim, indagações que o tempo todo colocarão à prova o depoimento prestado e a farão ser revitimizada por inúmeras vezes, na intenção perversa de que, em algum momento, ela assuma a responsabilidade pela violência sofrida.

Isso ocorre porque nosso sistema jurídico não somente foi fundado sob um viés de dominação masculina, como também foi e ainda é utilizado como instrumento para garantir que a divisão sexual de papéis sociais que coloca a mulher em posição de inferioridade e submissão seja perpetuada.

Como bem citou a Ministra Cármen Lúcia em seu voto na ADPF 1107, demorou muito tempo até que a legislação penal deixasse de exigir o cumprimento de regras de conduta específicas para que as mulheres pudessem vislumbrar algum tipo de proteção e mesmo com as mudanças na legislação, abusos seguem ocorrendo.

Desde a fundação da nossa estrutura social, a violência física e sexual contra a mulher foi estabelecida como mecanismo de afirmação e manutenção da autoridade masculina e coube ao Direito o papel de formalizar esse mecanismo, designando ao pai ou marido a função de “chefe” da família e conferindo poder praticamente ilimitado deste sobre a mulher e os filhos. 

Segundo nosso ordenamento, a mulher tinha status legal de propriedade e não havia qualquer garantia jurídica em relação à sua integridade, podendo o “homem da casa” fazer com ela o que bem entendesse. Se desafiasse esse modelo ou não atendesse aos padrões comportamentais de docilidade, recato e submissão, a mulher era vista como “desviada”, ficando suscetível a formas de “correção” como insultos, espancamento, confinamento, estupro e homicídio. 

Na legislação penal, a princípio, a criminalização das violações sexuais praticadas contra as mulheres não veio para protegê-las, mas para estabelecer regras entre os próprios homens sobre o que poderiam e o que não poderiam fazer em relação à propriedade de outros homens. Violar o corpo de uma mulher não significava violar a dignidade desse ser humano, significava danificar um patrimônio, seja porque o ato poderia desvalorizar a filha virgem, tratada como mercadoria a ser vendida pelo pai através do casamento, seja por violar o direito exclusivo do marido de usufruir sexualmente da esposa. 

Posteriormente, o crime passou a ser compreendido como uma violência sexual, porém, sua tipificação trazia conceitos que diziam respeito ao comportamento individual da mulher, definindo quem poderia e quem não poderia ser vítima, e assim permaneceu por muitos anos.

Em razão disso, durante muito tempo o estupro foi classificado como um crime que atentava contra os costumes sociais e não contra a dignidade da vítima. O que restava violada era a honra da família e do patriarca, importando muito pouco para o Direito Penal a afetação que o delito causava na mulher vitimada. 

Das Ordenações Afonsinas, de 1512, até o ano de 2005, após a lei 11.106/05, a “honestidade” da mulher era trazida como elementar de crimes sexuais, havendo variações na conceituação de “mulher honesta”, mas sendo constante a alta carga de moralidade que o termo trazia consigo. Em 1940, a exposição de motivos do Código Penal dispôs que “nos crimes sexuais, nunca o homem é tão algoz que não possa ser, também, um pouco vítima, e a mulher nem sempre é a maior e a única vítima dos seus pretendidos infortúnios sexuais”. Nesse trajeto, nosso sistema jurídico contribuiu e muito para a desumanização da mulher e objetificação do corpo feminino. 

Portanto, mesmo que muitas mudanças tenham sido operadas no decorrer do tempo, a visão social predominante ainda é a de que a mulher deve se comportar de acordo com regras sociais estabelecidas séculos atrás. Qualquer desvio desse padrão é utilizado como prerrogativa para que ela tenha seu corpo e seus direitos violentados e para que essa violência seja justificada.

Essas justificativas não se dão porque a ocorrência de crimes sexuais não causa repulsa, pelo contrário, a tendência natural da grande maioria das pessoas é condenar esse tipo de violência. Porém, existe uma grande dificuldade de entendimento sobre o que caracterizaria um episódio de violência sexual, visto que já nos primeiros modelos de civilização foi firmada a premissa de que o corpo da mulher deve ser objeto de controle e que homens têm poder de disposição sobre ele.

A partir dessa premissa, foram estabelecidos critérios extremamente limitantes e praticamente inatingíveis para o reconhecimento dessas agressões como injustas, em vez de “merecidas”. 

Por conta desse entendimento, o conceito de violência sexual é flexibilizado e prevalece a ideia de que a análise das circunstâncias do caso concreto não é suficiente para estabelecer sua configuração. É necessário também analisar o perfil da vítima e verificar se ela atende ou não aos padrões de comportamento impostos socialmente.

Dessa forma, quando a mulher que reporta a violência sexual não se enquadra em parâmetros absurdos como vestimenta recatada, comportamento comedido ou “resistência inequívoca”, seu relato corre o risco de ser desacreditado, pois não é visto como violência e, sim, como um ato sexual respaldado por uma espécie de “consentimento presumido”, derivado da forma como a vítima se portou antes, durante e depois do crime. 

Em outra via, a sociedade acaba por neutralizar a violência praticada pelo homem, concebendo-a como algo natural, passível de acontecer, principalmente quando a mulher, a partir de algum comportamento considerado como desviante, “provoca” a reação violenta.

E, na concepção de uma sociedade conservadora e machista, há tantas formas de uma mulher se comportar de forma “inapropriada”, que culpar a vítima em vez do agressor se torna algo trivial.

Analisando da jurisprudência brasileira é possível verificar que ainda que os magistrados reconheçam a importância da palavra da vítima em delitos ocorridos na clandestinidade, como é o caso da maioria dos crimes sexuais, a afirmação é sempre acompanhada de uma ressalva a respeito da necessidade de coerência desse relato com as provas apresentadas nos autos, que na retórica jurídica acaba também se transformando na necessidade de conformidade da narração dos fatos com a crença do julgador do que seria fundamental para a configuração desses crimes. É na valoração desses elementos que os mitos de estupro são incluídos e exigências absurdas são colocadas entre a mulher e sua busca por justiça.

“Quanto ao crime de importunação sexual, improcede a pretensão punitiva. Isso porque a ofendida admitiu ter ingerido a bebida ‘Gin’ pouco antes dos fatos, encontrando-se parcialmente embriagada, inclusive vindo a dormir no trajeto de táxi até a sua casa, de modo a não haver a certeza necessária de que tenha percebido a exata conduta praticada pelo denunciado, ou seja, se realmente colocou sua mão nas pernas da ofendida.” (TJSP, sentença de Ação Penal de importunação sexual julgada improcedente em 15 de agosto de 2022.

“Bela, recatada e do lar”, a vítima perfeita não bebe, não usa roupas provocantes, não sai à noite sozinha e nunca interagiu com o agressor. É frágil e indefesa, mas resiste à violência de forma incisiva, de modo a não deixar dúvidas sobre a sua negativa. Apesar do trauma, consegue relatar a violência com coerência e riqueza de detalhes, sem demonstrar frieza ou falta de emoção, obviamente. Para as que não se enquadram nesses requisitos, ou seja, a grande maioria das mulheres, a reação social, em geral, é de descrédito e de culpabilização.

“Analisando o caso concreto, entendo que a suposta vítima não se encontrava em situação de vulnerabilidade, tendo plena ciência do que se passava, não se podendo falar em vulnerabilidade, uma vez que esta consentiu para a relação sexual e atos libidinosos de forma válida. Tinha experiência sexual e sabia o que fazia, bem como as consequências de seus atos. (…) Considerando-se ainda que, atualmente um jovem, já na idade da vítima, tem mais amplo acesso a informações sexuais.” (TJSP, em 2 de outubro de 2018, em sentença de ação penal de crime de estupro praticado contra vítima que contava com 11 anos de idade à época dos fatos).

Nessa concepção, a violação dos padrões de sexualidade impostos tem peso maior que a violação real do corpo e da dignidade da mulher (ou menina), o que permite que o agressor atue com o aval da sociedade e dos sujeitos que operam o sistema penal, inevitavelmente influenciados pela cultura do estupro e suas ramificações.

Todos esses valores distorcidos propagados no meio social também são internalizados pelas vítimas, que quando sofrem essa violência, acabam tendo como primeira reação procurar no próprio comportamento motivos que as fizeram ser estupradas ou que “permitissem” que o agressor as estuprasse.

O avanço da legislação e das decisões de Tribunais Superiores que tensionam uniformizar o procedimento criminal e as decisões judiciais para que seja garantido às vítimas um mínimo de proteção à sua integridade e respeito à dignidade é indispensável, mas para além de oficiar os órgãos judiciários para que julguem conforme a lei e a Constituição, é preciso mudar a prática vigente, que incorpora a cultura do estupro aos atos e julgamentos, relativizando todo tipo de dispositivo para seguir fazendo mais do mesmo, responsabilizando a vítima e isentando agressores. 

Vale lembrar que ainda que o caso de Mariana Ferrer tenha resultado em uma lei de proteção à vítima com seu nome e o consequente julgado recente do STF, a repórter que revelou ao público os abusos cometidos pelo advogado de defesa e permitidos pelas autoridades presentes foi acusada e condenada a um ano de prisão e ao pagamento de indenização de R$ 400 mil reais em sentença criminal que usava o argumento do “segredo de justiça”, não para proteger a vítima, mas para retaliar a exposição de autoridades judiciárias que nada fizeram para impedir que Mariana fosse criminalizada e humilhada em audiência.

É sem dúvida um marco histórico que o voto de uma Ministra que proíbe a desqualificação da vítima de crimes sexuais e outros crimes contra a mulher seja acompanhado integralmente e de forma unânime por todos os integrantes do Supremo Tribunal Federal, podemos dizer, sim, que é mais um avanço.

Ao mesmo tempo, a cena tão simbólica também retrata a desigualdade gritante dos dias atuais: em um país que registra um estupro a cada 7 minutos, sem considerar que em média 90% dos casos sequer são reportados, há apenas uma mulher no Supremo a quem cabe a impossível função de representar a todas nós. Portanto, ainda que a lei e a jurisprudência mudem, as raízes do nosso sistema jurídico seguem estampadas na composição do STF e de órgãos de todas as instâncias. Um Direito com estrutura patriarcal e essencialmente masculino.

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  • Lívia Reis

    Especialista em Ciências Penais, co-fundadora do Coletivo Nós Seguras e do Projeto Transversais, feminista, abolicionist...

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