Por Marta Dillon, Mariana Carbajal y Laura Rosso em Página 12.

Tradução de Emilene Lubianco de Sá/Catarinas

“O aborto é um tema-chave porque levanta a questão ‘quem tem poder sobre os corpos?”, afirmou a filósofa norte-americana pós-estruturalista Judith Butler, em um encontro com jornalistas na Universidad Nacional de Tres de Febrero  (UNTREF), em visita recente à Argentina. Butler fez importantes abordagens à teoria queer e ao campo dos feminismos. Ela é autora dos livros Problemas de Gênero: feminismo e a subversão da identidade e Bodies that matter , entre outras publicações.

A entrevista coletiva foi o único contato de Butler com a imprensa, momentos antes da conversa pública com algumas integrantes do coletivo Ni Una Menos, convocadas sob o título “Ativismo e Pensamento”. Na porta, centenas de pessoas fizeram fila desde cedo para entrar no microestádio da UNTREF, onde foi realizado o encontro, cujo ponto central foi o desejo também coletivo pela teoria feminista que acompanha a onda massiva de ações de rua, sobretudo na Argentina.

Quatro eixos se cruzaram na conversa com as integrantes do Ni Una Menos: o poder transnacional dos protestos feministas; a composição do movimento feminista e a sua possibilidade de narrar conflitos que atravessam identidades, territórios e línguas; e o avanço conservador que também surge dentro dos movimentos feministas com os grupos biologicistas e o punitivismo. Na conversa com um pequeno grupo de jornalistas, o aborto, as denúncias sobre violência sexual e o punitivismo também foram temas fundamentais.

Essa sessão foi uma prévia do II colóquio internacional intitulado “Los mil pequeños sexos” (Os mil pequenos sexos), no qual serão abordados os debates que dão forma ao campo dos Estudos de Gênero e Sexualidade e serão estudadas criticamente as políticas implantadas pelas instituições e pelos ativismos.

O que você prefere? — foi a primeira pergunta.
Não sou binária — respondeu.

Outro jornalista, para Butler:

Você disse que o futuro não são as mulheres, mas o feminismo…
Controverso. Quer que eu fale de feminismo sem as mulheres? Há trans que vêm até a mim e dizem que mulher é uma ficção, eu respondo que isso não é verdade. É verdade, à medida que você acredita, é seu direito ser assim também. Pode se chamar de mulher, é uma categoria histórica que mudou com o passar do tempo. Existem muitas maneiras de ser mulher, mas eu também digo que o feminismo não pode ser separatista. As mulheres precisam estar entre elas, principalmente quando falam de violência ou assuntos específicos de sua vida íntima. Quando você se pergunta o que é ser mulher, há um grande debate porque mesmo quando se é denominada mulher (ao nascer), isso não quer dizer que você seja uma mulher.

Na Argentina, um homem pode trocar de sexo e o Estado paga, mas uma mulher não pode abortar porque é crime…
Você aponta na sua pergunta o que o Estado permite e financia. Fazemos a mesma pergunta com todas as técnicas de reprodução assistida: para todas as pessoas ou apenas para as casadas? Acredito que existam formas patriarcais de poder, para entender por que o aborto é criminalizado: é porque o corpo da mulher é do Estado, da Igreja, ou da Igreja dentro do Estado, porque são amigos muito próximos. Em geral, se financiam (as técnicas de reprodução humana assistida) a parceiros heterossexuais ou casados. A proibição do aborto é uma penalização para a livre sexualidade das mulheres.

Butler continuou referindo-se ao problema da criminalização do aborto. “O tema do aborto é fundamental porque levanta a questão sobre a quem pertence o corpo da mulher e quem tem poder sobre seus corpos”. E acrescentou: “Isso também nos leva a pensar como o Estado colocou em suas leis uma moralidade cristã. Uma mulher que decide ignorar a lei e decide com sua própria autonomia acaba sendo criminalizada. De quem é o poder que força uma mulher a ter um filho quando ela não quer? É o Estado e a Igreja que forçam as mulheres a um ato reprodutivo. Então, essa lei é uma violação, é um crime.”

Uma jornalista também levantou a forma de pensar sobre o recente suicídio de um músico mexicano logo após ser denunciado por abuso sexual durante o movimento MeToo daquele país. Para Butler, esse é um assunto “muito complicado”. E continuou: “O #MeToo foi muito importante para nos mostrar o quanto a violência, o abuso e a discriminação tinham lugar em diferentes lugares, no trabalho, em casa, na rua, estavam generalizados. Era necessário saber, mostrar, essa é uma contribuição”. No entanto, acrescentou que as feministas devem pensar sobre o que buscam com as denúncias. “Vamos fazer justiça? Porque a justiça formal protege os poderosos (nos casos de abuso ou assédio sexual), não há testemunhas, porque os casos acontecem em um local fechado onde não há outras pessoas, e os juízes não têm evidências. Busca-se denunciar o ato ou arruinar a vida de outra pessoa? Isso é algo que se deve perguntar.”

E então ela argumentou que esse tipo de movimento deveria contribuir, com suas denúncias, para uma mudança cultural. “As mulheres negras têm uma ideia de justiça restauradora, que não tem a ver com a prisão porque é mais opressão para os homens negros”, ao contrário, uma justiça restauradora “refere-se a um trabalho de toda a comunidade reconhecendo os danos, a fim de repará-lo”.

O que os homens devem fazer nas lutas feministas? — perguntou.
A violência contra mulheres e trans ocorre porque eles se protegem, não se opõem quando a namorada é morta, têm essa irmandade, mas deveriam sair às ruas, gritar aos quatro ventos e dizer “não podemos violentar nem matar as mulheres”. Essa é uma grande coisa a se fazer.

“Fico feliz por estar aqui! Não é tudo igual na América Latina. Todo o resto do mundo está observando o que estão fazendo. Em São Paulo eu era a bruxa, mas também era trans”, saudou Butler.

Voltou-se ao problema da criminalização do aborto e ressaltou que “deve haver recursos para todas as pessoas, que tenham acesso (à interrupção voluntária de uma gravidez) não importa o quão ricas sejam”. Contudo, “o compromisso é com a saúde das mulheres”, deve haver “centros de saúde que sejam acessíveis, financiados por fundos públicos, deve haver uma inversão para poder exercer esses direitos. E essa é a diferença entre direitos pessoais e o direito social que implica que todas as pessoas tenham acesso”.

Ao final da entrevista coletiva, Butler diferenciou o impacto do movimento Ni Una Menos do MeToo: “Aqui está um movimento coletivo que se propõe a fazer uma mudança cultural, para dizer em voz alta: ‘isso não é mais aceitável’. É diferente de incitar a eliminação de um indivíduo, pois, assim, estaríamos nos tornando juízes e executores de uma pessoa e não estaríamos condenando o ato. Os atos fazem parte de uma prática que está enraizada na sociedade, e é o que queremos mudar.”

 

 

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