As trajetórias das ciências sociais no âmbito mundial estavam na maioria das vezes sofreadas por movimentos antagônicos de narrativas. Seja pelas quais favoreciam o debate político, cultural, social, psicológico, geográfico e epistêmico da época ao qual cada narrativa se sobressaia, seja também pela exclusão e silenciamento de outras.

Ao entrar na universidade, quando percebi que apenas 0,1% das pessoas trans estavam nela (segundo levantamentos realizados pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior e pelo jornal Estado de S. Paulo), pude ver minha condição não só de privilégio por estar num espaço de poder, como também a oportunidade de frear as discussões que estavam sendo colocadas sobre nossos corpos, criar novos imaginários, memórias e possibilidades de existência para as pessoas trans, em especial travestis e mulheres transexuais.

Aqui no Brasil, até o momento, devido ao baixo número de cursos de graduação em Antropologia, serei a primeira travesti a graduar-se em Antropologia em breve. Quando tive conhecimento dessas informações, entendi qual era o meu papel no ambiente acadêmico que não foi estruturado para corpos como o meu, nem mesmo as narrativas que perpassam ele. No primeiro semestre da universidade, após muitas dificuldades e com muito medo, quis submeter minha primeira comunicação científica.

Era parte de um trabalho que precisava apresentar para a disciplina de Introdução à Antropologia e que quis falar sobre transexualidade e povos indígenas, principalmente o caso dos Amarete bolivianos, que segundo estudos recentes feito pela antropóloga polonesa Ina Rösing, possuem mais de dez tipos de gêneros simbólicos em sua conjuntura cultural, como também o caso das Muxes mexicanas da etnia zapoteca e a particularidade das mulheres trans indígenas no marco do conflito armado colombiano.

Foi um trabalho de estudo intenso sobre as particularidades de cada caso, mas que a intenção final, nos dois primeiros casos, era mostrar a condição ancestral das travestis em outras culturas que se diferem da que a maioria das travestis vivenciam no contexto sócio-internacional. E no último caso, sobre o conflito armado colombiano, a empreitada de um narcoestado para a destruição da diversidade.

Após esse trabalho, comecei a me interessar a fundo sobre o tema, porque ele me mostrava outras dimensões sobre minha condição trans. Depois do segundo semestre, tive a oportunidade de estudar ainda mais a fundo conhecendo autoras trans que também estudavam sobre o tema e dentre elas, gostaria de citar algumas para o conhecimento de todas as pessoas: Megg Rayara, Allanis Bello, Amara Moira, Adriana Sales, Brigitte Baptiste, Dodi Leal, Jaqueline Gomes, Julia Serano, Leila Dumaresq, Leticia Lanz, Luma Andrade, Raewyn Connel, Viviane Simakawa, Yren Rotela e Sara Wagner, dentre várias outras que não foram citadas e que são muito importantes tanto como referências bibliográficas para meus trabalhos quanto inspirações para continuar existindo e ter esperança no mundo.

Muitas dessas referências foram essenciais para a escrita do meu primeiro artigo. Foram muitas dificuldades enfrentadas, mas gostaria de frisar as inúmeras vitórias. Pois quando comecei a escrever o resumo do artigo para enviar ao congresso, dei entrada no processo de retificação de nome e gênero dos meus documentos. No processo da escrita, a minha maior dificuldade foi o medo, a insegurança de pensar que o que eu estava escrevendo não teria valor nenhum para a estruturação epistêmica que se encontra a universidade.

A apresentação do meu artigo, intitulado “Narrativas transviadas: silenciamento, colonialismo jurídico e a busca por ancestralidade travesti”, foi recebida com aplausos no I Encontro Pós-Colonial e Decolonial na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), em Florianópolis. Esse artigo foi fruto da leitura que tive das matérias que cursei no segundo semestre e que foram discussões essenciais para a escrita dele.

No artigo, pude discutir sobre as narrativas silenciadas e as narrativas hegemônicas que perpassam a historiografia canônica. A escrita, nesse processo do artigo, foi a ferramenta onde pude relatar o que o mundo não fala sobre minha existência. Na estrutura, umas das minhas principais discussões para a escrita foi o termo travesti. Não me sentia confortável em dizer que algumas organizações culturais indígenas eram travestis, afinal, esse termo tem divergência até dentro do próprio movimento trans.

Foi aí que percebi que a realidade travesti é uma ferramenta analítica para elucidar corpos que fogem de uma lógica eurodescendente e ocidental sobre os modos de ser.

A arquitetura fundamental do trabalho foi entender que o dito sujeito, o qual faz história para a historiografia canônica, precisa ser necessariamente homem, branco, heterossexual, masculino, judeu-cristão e cisgênero. A partir disso, quis entender como corpos travestis, após o colonialismo, se adentram nessas estruturas do pensamento. Quis pensar as ontologias, epistemologias, narrativas, travestilidades e ancestralidades que esses corpos emanam.

Quando falei do colonialismo jurídico, ou melhor, a imposição do Direito positivista, foi quando comecei a pensar algumas coisas que vivi no meu processo de retificação, principalmente ao fato de que o Estado que não criava políticas públicas para pessoas trans era também responsável por ditar ontológica e socialmente quem eu sou.

O Estado tem um dispositivo central que contribui para a marginalização, o transfeminicídio e tem uma agência sobre os corpos para negar-lhes a ancestralidade. A natividade do Ser travesti é a sua própria ancestralidade, logo, se esse Ser tem, dentro do Brasil, uma estimativa de vida de apenas 35 anos, nós estamos falando sobre um assunto sério.

No decorrer da escrita, percebi que apenas dizer os silêncios não seria o suficiente no artigo, afinal o que os dispositivos de poder querem é exatamente que falemos sobre as violências, os silêncios e que continuemos caladas. Por isso quis pensar uma contra produtibilidade do poder em falar de organizações que denominei traviarcas, onde descrevo que seriam organizações onde corpos travestis ocupem um papel de poder na estrutura cultural e cosmológica.

Por isso, minha intenção era contribuir para a memória social, para buscar construir ancestralidade travesti e mostrar ao mundo outros lugares que são culturalmente determinados também, só que neste caso, num âmbito de poder a corpos que na cosmovisão judaico-cristã, branca, heterossexual, colonizadora e cisgênera estão na marginalidade. O dado mais interessante que encontrei foi a partir de uma autora chamada Coral Herrera, onde ela relata que há, na América, cerca de 150 grupos ameríndios com a presença de corpos ditos travestis e que fez fundamentar meu debate sobre ancestralidade e mudança do imaginário sobre existências transviadas.

Finalmente pude ler muitas realidades que ainda, para mim, não tem respostas muito contundentes. Há um interesse do Estado em nos matar e há um motivo para isso. O ser só pode produzir história vivendo, e isso me dá várias reflexões.

Não consigo pensar que o genocídio das populações negras, atrelado às populações LGBTs e em especial às travestis e mulheres transexuais, ocorre sem que haja um interesse internacional, econômico, político, ideológico, discursivo, psicológico, biológico, geográfico e imaterial envolvido.

É preciso pensar porque agora que essas travestis estão na academia, incomoda tanto a estrutura da universidade que foi criada, inicialmente, para uma elite intelectual necessariamente branca e cisgênera para estipular narrativas para o mundo. Há um problema com o ego, com o infamiliar, que causa estranheza e incomodo àqueles que estavam postos sobre um sujeito cartesiano, fixo e que agora está enviadescendo, como diria a Linn da Quebrada.

*Alessandra Mawu Defendi Oliveira, mulher travesti, membra da Associação de Travestis e Mulheres Transexuais de Foz do Iguaçu – Casa de Malhu, Promotora Legal Popular da Fronteira Trinacional e estudante de Antropologia pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana em Foz do Iguaçu, Paraná, Brasil.

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