Começo este texto falando da comunicação produzida pelo próprio Ministério da Saúde (MS) e difundida via web. Que está cada dia mais difícil de acessar, com links não mais encontrados, além de muitas informações estarem defasadas.
Por exemplo, o instrutivo do Viva – Vigilância Epidemiológica de Violências e Acidentes, material construído para auxiliar trabalhadoras/es da saúde para preencher a Ficha de Notificação/Investigação Individual de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências, disponibilizado na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), ainda mantém a ficha de 2006, onde consta o item ‘Práticas Sexuais’ e não a ficha com os quesitos ‘orientação sexual e identidade de gênero’, conforme a última versão. O destaque para a seção ‘Mulheres’ foi atualizado em 2010. E as demais publicações sob este menu ‘Mulheres’ encerram-se em 2011. Isto porque, no Brasil, uma mulher é estuprada a cada 11 minutos e uma mulher é assassinada, por questão de gênero, a cada duas horas. Além de o Brasil ser um dos piores países para a segurança, a saúde e a vida das pessoas LGBT em geral e das mulheres LBT, especificamente, onde só neste ano, até março, houve um incremento de 22% nos assassinatos de mulheres transexuais e travestis, em relação à 2016.
Fica parecendo que estes são fatos sem importância para o Ministério da Saúde. Se temos o entendimento que a violência contra as mulheres é uma das questões, senão a questão que mais produz agravos para a vida e a saúde das mulheres, se temos o entendimento que a violência contra as mulheres é questão estruturante e mantenedora das desigualdades de gênero, deveríamos ter este assunto como número um da temática Mulheres nos espaços de comunicação do MS.
Estamos fartas e fartos de saber que informação é poder. Há até quem chame a mídia de quarto poder. Então, quanto menos informação você tem, mais à mercê você fica dos que detém os meios de comunicação, que no Brasil são, em sua grande maioria, oligopólios. O jornal impresso, a revista, a rádio e a retransmissora de televisão, na maioria das cidades, são todos do mesmo grupo familiar ou religioso, fato que nos leva a deduzir que urge democratizar a mídia.
Sou uma enfermeira sanitarista. Não sou uma uma pessoa da área de comunicação, não conheço as teorias da comunicação. Mas, sinto na pele o que a comunicação faz cotidianamente com as mulheres, como estimula nossa desvalorização, como reafirma ditos populares negativos para mulheres, como constrói o imaginário popular e, a partir dele, se reproduz, não só nas mídias hegemônicas (tv, rádio, revistas e jornais), mas também em grande parte das mídias alternativas e nas relações interpessoais. Como ajuda a enraizar a cultura da violência contra as mulheres e, nas suas situações-limite, a cultura do estupro e do feminicídio.
As telenovelas são unanimidade nacional. Lucia Rincon, que também é a presidenta da União Brasileira de Mulheres (UBM), entidade que eu represento no Conselho Nacional de Saúde, avalia que as novelas são modernas na forma e conservadoras no discurso. E, no mesmo artigo, intitulado “A educação que não passa pela tevê”, diz também que a televisão (e outras mídias) “são instâncias socialmente autorizadas a legitimar discursos, comportamentos, hábitos de consumo, valores e tudo o mais que a convivência social exige”. Podemos buscar exemplos além das novelas, nos filmes, nas propagandas, nas notícias, nos programas humorísticos, quando as piadinhas machistas desvalorizam a inteligência e outros atributos positivos das mulheres e os estupros e outras violências são romantizados, com personagens femininas de novelas e filmes que se apaixonam pelos seus abusadores e com homens cometendo feminicídio porque ‘amavam’ demais.
Precisamos debater grandemente estas situações, para que piadinhas machistas sejam vistas como o que realmente são, situações de assédio moral e sexual. E para que estupros e assassinatos de mulheres sejam vistos como crimes contra as mulheres, como crimes contra a humanidade.
Quando a mulher com pouca roupa é usada para vender cerveja ou automóvel, a mensagem subliminar é: compre o produto anunciado e ganhe esta mulher de brinde. Esta coisificação da mulher solidifica sua imagem como objeto de posse, contribuindo para naturalizar esta imagem. Afinal, “se este objeto me pertence, posso fazer dele o que eu quiser”. Ou então, somos aquela linda família branca, da classe média, limpa e contente, que come margarinas e iogurtes no café da manhã. São estes os dois lugares dados às mulheres: a sensual e a mãe. Em outras palavras, a puta e a santa.
A cultura da violência estabelece tempo, lugar e forma para as ações das mulheres. E se vc foge do padrão estabelecido, você é merecedora de castigos. Portanto, torna-se necessário marcar desde logo as diferenças e transformar estas diferenças em desigualdades.
Leia mais
O patriarcalismo é um sistema de privilégios masculinos, que se mantém produzindo e impondo opressões sobre as mulheres. E faz isso de formas muito sutis, sempre naturalizando as opressões de um jeito que, muitas vezes, nem as próprias mulheres se dão conta da opressão que sofrem. Os meninos são criados para o espaço aberto e as meninas, para o confinamento. Quando um garoto, jogando futebol, tem na sua frente um garoto do seu time, mais ao lado tem um outro garoto do time adversário e, lá adiante, o gol, ele precisa decidir rapidamente se faz um passe para o companheiro, se dribla o adversário ou se arrisca um chute ao gol. Está treinando trabalho em equipe, está treinando tomada de decisão. Enquanto isso, sua irmãzinha está brincando dentro de casa, as voltas com bonecas, com panelinhas e com vários objetos para ‘melhorar’ sua aparência. Então é para isso para que ela é treinada, para ficar linda e ser escolhida por um príncipe encantado, com ele ter bebês e cuidar do castelo e das pessoas que nele vivem. Fica parecendo que tudo sempre foi assim e assim sempre será. O patrimônio (o ‘munus’, a missão, a função do pai) desde a Grécia Antiga, é gerar e gerir os bens do casal e seus descendentes, às custas de guerras, inclusive. O matrimônio (o ‘munus’ da mãe) é gerar a força de trabalho e gerir a casa. Hoje, as mulheres são parte importante da própria força de trabalho, mas as representações sociais da sua função continuam atreladas aos conceitos da Grécia antiga.
Além disso, o capitalismo se apropria das pautas das mulheres e as usa contra nós. Se a ciência diz que criamos, em nossos cérebros, mais sinapses que os homens, se os homens estão dentro da idéia de ‘uma coisa de cada vez’ e as mulheres dentro da idéia de ‘tudo ao mesmo tempo agora’, já que a ciência ‘descobriu’ que mulheres são multitarefas, realizem multitarefas, mulheres. Vocês podem! E mais que tudo, devem! E de ‘Rainhas do Lar’ passamos à condição de ‘Escravas do Lar’.
O machismo, o sexismo e a misoginia são os pilares de sustentação do sistema patriarcal, sistema que cria e mantém muitos privilégios para os homens e penaliza as mulheres que ousam desobedecer suas regras, mulheres que não sabem ou não querem saber ‘qual é o seu lugar’. E as feministas, mulheres que se dedicam a produzir teorias e realizar ações para diminuir as desigualdades entre homens e mulheres, são ditas como aquelas que estão sempre fazendo ‘mimimi’, que vêem machismo em tudo. “O problema não está em ver machismo em tudo; o problema está em não ver o machismo!”
Quando uma mulher é espancada por um homem, a primeira pergunta que ocorre para a maioria das pessoas é: o que ela fez? Quando acontece o inverso e uma mulher agride um homem, logo ouvimos a exclamação: que louca! Acho que esta é uma grande diferença: as agressões que uma mulher sofre por parte de um homem são legitimadas socialmente enquanto o inverso não tem legitimação social. E os jornais escritos, falados e televisionados fazem reportagens culpabilizando as mulheres pelas violências que sofrem, sejam violências físicas, sexuais, psicológicas, geracionais, raciais, patrimoniais ou outras. E, segundo uma pesquisa feita pelo Datafolha, no Brasil, 33% da população diz acreditar que a vítima tem culpa em casos de estupro. A imprensa nacional também reproduz as falas de homens se desculpando das violências que cometeram: ‘Primeiro eu conversei. Depois eu mandei. Se ainda assim ela não me obedeceu, aí eu tive que bater, né?!’
Também ouvi e li muitos jornalistas e assessores de imprensa noticiarem fatos, relatados inteiramente no masculino, mesmo que os fatos envolvessem também mulheres, com a desculpa que a linguagem inclusiva de gênero não faz parte do linguajar jornalístico. E, na busca da equidade para mulheres, a visibilidade é fator da maior importância. Precisamos mostrar e saber que ali havia mulheres, tanto para que possamos expor nossas demandas aos olhos da sociedade como também para que outras mulheres nos vejam e não se sintam sozinhas em suas necessidades, em seus sofrimentos, em suas denúncias, em suas resistências.
Foi pensando nas necessidades, nos sofrimentos, nas denúncias e nas resistências das mulheres, que o Conselho Nacional de Saúde convocou, em março de 2016, a 2ª Conferência Nacional de Saúde das Mulheres. Sua etapa nacional vai acontecer em Brasília, no mês de agosto.
Esta Conferência vem, como diz seu próprio nome, para conferir o estado d’arte da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Mulheres. Para propor melhorias, avanços, e para impedir retrocessos. E dá um norte para como deve ser feita esta avaliação, através de seu tema central ‘Saúde das Mulheres: Desafios Para a Integralidade Com Equidade.’
Nossa Constituição Federal, na Seção II, da Saúde, diz, no seu artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
Podemos buscar na 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986, aquela que criou as bases constitucionais do SUS, o conceito ampliado de saúde proposto por esta conferência: “Saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio-ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida.” Portanto esta Conferência afirma que a saúde não é mais entendida como meramente a ausência de doenças.
O próprio Ministério da Saúde admite que “mulheres e homens, em função das relações de gênero, estão expostos a padrões distintos de sofrimento, adoecimento e morte.”
Portanto, queremos sair daquele modelo mãe e bebê, onde a mulher só é valorizada quando cumpre sua função de reprodutora da força de trabalho. Queremos receber atenção integral, de acordo com nossos ciclos de vida, com as nossas raças e etnias, de acordo com as nossas orientações sexuais e nossas identidades de gênero. E receber atenção diferenciada se somos do campo, da cidade, das florestas ou das águas, se o nosso trabalho é formal ou não, se temos moradia ou vivemos em situação de rua, ou se estamos sujeitas a outras vulnerabilidades. Isto é o que desejamos: receber atenção integral com equidade.
Para isso, contamos com o apoio de comunicadoras e comunicadores, fazendo a defesa inconteste do SUS, ampliando o debate e a compreensão das diversas políticas de saúde, dos temas afetos às mulheres, das nossas demandas e nossas propostas. Porque, como bem disse Simone de Beuvoir: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”
*Texto proferido pela autora na mesa “Desafios da comunicação em saúde” na 1ª Conferência Nacional Livre de Comunicação em Saúde, realizada pelo CNS entre os dias 18 e 20 de abril de 2017.
1A educação que não passa pela tevê, Lucia Rincon
2Simone Lolatto – Fala no Seminário da Fenafar. Florianópolis, em 18/3/2017
3Constituição da República Federativa do Brasil
4Relatório da 8ª Conferência Nacional de Saúde MS – 1986
5Princípios e diretrizes. MS/ATSM – 2004