* Por Luciana Sérvulo da Cunha 

“-Deu tudo certo hoje no primeiro dia de filmagem. Amanhã veremos se foi sorte ou não!
-Você quer ser atriz com esse corpo?
-Com essa carinha, você nunca será protagonista!
-Não sei o porquê de meninas sem talento insistirem em tirar o lugar das que tem talento!
Sem graça, na hora eu ri. Disfarcei. Senti vergonha. Travei e emudeci. Deixei pra lá e segui. Como se nada tivesse acontecido. Quando cheguei em casa que percebi. Perdi a vontade de sair. De atuar novamente. De dançar. De filmar. Como se minha alegria e paixão tivessem se esvaído a partir daquela situação!”

A violência psicológica no meio artístico, assim como em outras áreas e relações humanas, acontece de maneira naturalizada e silenciosa. Não se trata de um problema individual ou de um pequeno grupo, de uma categoria ou empresa específica. Ela faz parte de um rol de horrores que refletem e alimentam preconceitos estruturais que impactam de forma perigosa e nociva toda a nossa sociedade.

Tomo a liberdade de dizer que “pecaria” quem não conseguisse perceber uma maior dimensão desse problema, como ele está se refletindo atualmente na nossa situação política e o quanto se faz urgente combatê-lo!

Inimiga impiedosa, invisível e perigosa, a violência psicológica não deixa marcas físicas, mas gera grandes traumas e profundas feridas psíquicas. É a porta de entrada para outros tipos de violência que não andam nunca só: a violência física, a violência política, a violência moral, a violência patrimonial e a violência sexual.

A violência psicológica é uma das mais praticadas contra as mulheres no Brasil e na América Latina. Paradoxalmente, a mais difícil de ser reconhecida, combatida e, consequentemente, punida, conforme dados divulgados pela pesquisa Evidências sobre Violências e Alternativas para mulheres e meninas, do Instituto Igarapé.

Pode ser praticada em diversos níveis e graduações nas relações familiares, amorosas, profissionais e de amizade. Pode também existir a nível macro/coletivo e se manifestar em uma relação perversa e cruel da parte de um governante para com o povo de um país. A violência psicológica tem a ver com mau uso do poder, cria asas a partir do desejo obsessivo de controle e dominação do outro e casa perfeitamente com regimes fascistas, genocidas e tirânicos.

Sedutor(a) e encantador(a), um(a) abusador (a) não entra em nossas vidas se anunciando como tal. Age de forma sutil, inteligente e imperceptivelmente inverte valores, distorce acontecimentos, mina os terrenos. Vai semeando dúvidas, manipulando nossos sentimentos de maneira a persuadir a visão e a própria experiência que temos de quem somos, influenciando e desfigurando a nossa própria identidade, individual ou coletiva.

Vamos perdendo foco, capacidade de concentração e o nosso desempenho cai. A depressão chega e quando nos damos conta, é tarde demais: já estamos presas e presos em uma teia espinhosa, visguenta e pegajosa com a nossa autoconfiança em frangalhos. É quando o kit “culpabilidade”, acompanhado de constrangimento e humilhação, geralmente na frente dos outros, é arremessado em nossa direção.

As dores da violência psicológica

“Esse jogo se repetia sem parar e gradativamente se acentuava e aprofundava. Ia e vinha como um looping frenético de uma roda gigante. E a cada rodada, minha força se dissipava, minha identidade se perdia, eu me confundia, a insegurança e o medo me invadiam.
Nesses momentos, ele dizia:
-Na boa, você que sempre tensiona!
-Você está começando agora, é muito insegura, não sabe nada ainda. Tem muita sorte de me ter ao seu lado ajudando e te mostrando o caminho!
-Me assusto com seus exageros.
Ou então a clássica: Você é sensível demais!”

Traiçoeira, capciosa, dissimulada, desumana, vil, impiedosa, maléfica, perversa e cruel. A violência psicológica é devastadora!

No meio artístico, não tem sido incomum vermos profissionais que se encontram em postos de liderança e poder, como diretores(as), preparadores(as) e produtores(as), fazerem uso de métodos abusivos naturalizados como parte de um processo de criação. Uma grande amiga, a atriz e professora Camilla Amado diz: “Toda(o) artista tem o Quixote dentro dele(a) que sonha com o impossível. O impossível na criação se torna possível. No processo de ensaio, você se despede aos poucos da sua máscara social e isso vai te dando um medo danado, porque você ainda não está de posse da máscara da personagem. Vai ter um momento que você vai passar pelo caos para criar. Não tem como criar sem passar pelo caos.”

É durante esse processo de criação, belo e caótico, que o(a) artista se entrega e adentra um estado de vulnerabilidade. “A inocência é o princípio da entrega” diz Amma, a grande mestra indiana conhecida como a santa dos abraços.

Nesse momento precisamos ter clareza e exigir respeito: nenhuma liderança tem o direito de ultrapassar limites invadindo o corpo físico, emocional e mental e nossa intimidade, transformando o processo de criação em um espaço abusivo e agressivo com imposições, constrangimentos e intimidações.

Ano passado entrevistei um psicanalista sobre a psiquê de abusadores e abusadoras e a força motora de muitos abusos, a chamada perversão narcísica. Em um determinado momento, ele afirmou que pessoas com TPN ou transtorno de perversão narcísica, não têm cura.

Oi? Como? Artista e terapeuta holística que sou acredito piamente em constantes transformações, na evolução do ser humano e que todas, todos e todes nós, em graus e ritmos diferentes, erramos e estamos sempre aprendendo a partir da correção de nossos erros através de processos de conscientização.

“-Um(a) perverso(a) narcísico(a) não tem esse recurso interno! Ele(a) não é capaz de olhar para dentro com profundidade e reconhecer verdadeiramente seus erros. Pensa que não há nada de errado consigo, se coloca sempre como vítima e acredita que a origem de todos os seus problemas e fracassos são causados pelos outros”.

Chocada com essa “nova” perspectiva de realidade onde algumas pessoas vivem e viverão sempre prisioneiras de suas mentes perversas, sem a esperança real de uma mudança, indignada perguntei:

“-Mas então o que fazer? Nada? Temos nós também que viver reféns dessa situação?

-Não, absolutamente! É preciso prevenir, conscientizar e curar vítimas. Quando não houver mais vítimas, perversos(as) narcísicos(as) não terão mais como propagar abusos!”

Surge a ONG Respeito em Cena

“Com hemorragias, anemia profunda, insônia e síndrome de pânico, meu nível de sofrimento passou a ser insuportável. Eu tentava me convencer e repetia pra mim mesma sem parar que aquilo não era normal, que eu precisava conseguir romper aquele ciclo. Mas eu já me encontrava tão debilitada que não tinha forças e energia para isso, estava paralisada e não conseguia ver nenhuma saída. Foi quando, finalmente, eu consegui falar e pedi ajuda.”

Afetada pelas constatações de um psicanalista, pelas minhas feridas, fatos que presenciei e vivi em uma relação abusiva, por dezenas de confissões sofridas e abafadas de amigas, pela invisibilidade e silenciamento desse tema mesmo entre nós artistas, pelo crescente e assustador aumento de feminicídios no Brasil e em toda América Latina, pela violência física, psicológica e moral que estamos sofrendo com o Governo Federal, pelas recentes denúncias públicas de abusos e assédios no meio artístico e dezenas de outras por vir, nasce a ONG Respeito em Cena.

Em conjunto com várias(os) colaboradoras(es) voluntárias(os), coletivos e instituições brasileiras parceiras como o Me Too Brasil, o projeto Justiceiras, o Tamo Juntas!, o Instituto Dona de Si, a HMF Mídias Digitais, Jornalismo e Cultura e agora o Portal Catarinas, juntamente com a presença de 12 países da América Latina e centenas de artistas e trabalhadoras (es) da Cultura, estamos caminhando na construção e realização da primeira Campanha Latino-americana de Prevenção e Combate a Violência Psicológica no Meio Artístico para nos fortalecermos, sairmos assim do lugar obscuro em que estamos dando um salto nas nossas relações individuais e coletivas.

Iremos juntas, juntos e juntes dissecar e revelar o corpo da violência psicológica, olhar com lupa suas entranhas, conhecer o modus operandi de autores e autoras de abusos, os sintomas e impactos causados pelo abuso emocional e o assédio moral e as características comuns de vítimas e sobreviventes, atuando com força, afeto e solidariedade, gritando aos 7 mares a importância de resgatarmos uma virtude essencial em extinção: RESPEITO!

Colabore! Assine o manifesto “Basta de Violência Psicológica”.

Clique aqui para conhecer mais sobre a Respeito em Cena e participar. Ou acesse nossa rede social.

* Luciana Sérvulo da Cunha é documentarista, diretora artística, terapeuta holística e ativista. Diretora e produtora dos filmes “A Rua dos Meninos” e “Hijos de la Revolucion”, foi assessora especial da presidência da República e diretora de patrocínios da SECOM no governo Lula. Trabalhou na Itália com o prêmio Nobel Dario Fo, foi executiva do projeto WE de Empoderamento de Mulheres na Índia em parceria com a ONU, assessora da EBC /TV Brasil e diretora artística da TV INES, televisão pioneira para deficientes auditivos no Brasil. Atualmente é parceira do #MeTooBrasil e acaba de fundar a ONG Respeito Em Cena onde coordena a primeira Campanha Latinoamericana de Combate a Violência Psicológica contra a Mulher no Meio Artístico e atua como uma das Embaixadoras junto com a cantora e compositora baiana Mariene de Castro.

 

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