(Raquel – nome fictício –  era uma amiga muito, muito amada. Aconteceu com ela e eu acompanhei esse processo de perto. Apenas um alerta)

Raquel sempre desejou um companheiro cúmplice, com afinidades, com desejo de crescer. E era extremamente exigente para escolher um namorado. Essa exigência é aquela, que não passa pela razão, mas pelo coração que releva todos os sinais de que aquela pessoa não é o que a razão queria, mas… era ele. Flávio. O seu sonho encantado.

Apaixonaram-se perdidamente, mas pouco se encontravam. A Raquel, às voltas com suas indecisões, sua tendência artística conflitando com a praticidade do dia a dia, dividia sua atenção entre os amigos roqueiros e maltrapilhos, e a atenção à Flávio: apenas MPB suave e um cuidado pisando em ovos. Tudo tranqüilo, Raquel tinha tudo isso dentro dela.

Mas, aos poucos, com a relação crescendo, Raquel já não convidava mais os amigos porque Flávio estava sempre com dor de cabeça, não se sentindo bem, tinha planos futuros que não davam resultado, tinha ambições e nela não cabiam os amigos de Raquel com costumes amorais.

Ela, dedicada, procurava entender tantos humores tristes, procurava com afinco mostrar a ele toda a alegria de viver que ela tinha. Buscava caminhos de harmonia entre os dois, planejava eventos de beleza simples – banhos de lagoa, jantares a luz de velas – mas Flávio, embora receptivo aos seus carinhos, não mudava seu humor pesado. Com a intimidade, passou a ter ataques de raiva, se sentia desrespeitado por qualquer brincadeira que Raquel, em vão, tentava dar um rumo de risos a conversas tão sérias no que Flávio, furioso, revidava fechando a cara. Quanto mais Raquel se esforçava, mais Flávio se encolhia, a cara brava.

Decidiram morar juntos. Raquel pensou: “Agora sim, tudo vai ser diferente, seremos felizes na nossa casa.” E a mudança ocorreu cheia de atropelos, a vida material pedindo urgência, a grana curta, mas estavam lá, juntos. E Flávio, contrariado, não dormia mais com ela, se fechava em copas, não a beijava, mal falava. Raquel não aguentou mais. Resolveu que era hora de colocar os pingos nos is e dizer o que sentia. E disse. Despejou sobre Flávio seus desejos contidos, suas impressões, a falta de amor dele para com ela, toda a sua frustração. Flávio olhou estupefato: “Raquel, desde que cheguei você só tem me agredido, eu estou tendo a maior paciência com você.”

Raquel surtou ao ouvir Flávio reclamando dela. Começou a chorar sem parar, gritava e esperneava a incompreensão de Flávio que, a partir desse instante, virou o companheiro que Raquel tanto desejava. Amoroso, compreensivo, ficou ao lado dela durante sua crise que durou dois dias. Fez tudo para aliviar o sofrimento de Raquel – sexo, inclusive – e toda sua atenção estava voltada para ela.

Raquel, cheia de remorsos, sentiu-se muito mal. Sentiu-se doente, acabada, neurótica, a beira da histeria. Percebeu, tristemente, que era ela o mal da relação. Que era ela que fazia com que tudo desse errado. Flávio, por sua vez, só a estimulava a aprofundar seu novo conhecimento sobre si mesma. E tomou as rédeas da situação, enquanto Raquel transformava-se numa triste sonhadora decepcionada. Ela era o erro de tudo.

Raquel já não faz mais jantares à luz de velas, não sorri mais com espontaneidade, não brinca mais. Não ouve mais rock e não se encontra mais com ninguém. Finalmente, ela é só, somente dele, de Flávio, que faz tudo por ela.

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  • Chris Mayer

    Chris Mayer é fotógrafa, jornalista, escritora e palhaça. Dedica-se à fotografia de palco, dramaturgia cômica, crônicas...

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