Desde o trailer, o filme “Cruella” causou um grande impacto na internet. Com duas grandes atrizes nos papéis principais, Emma Stone (Cruella) e Emma Thompson (Baronesa), o filme inclusive recebeu diversas críticas por supostamente humanizar e colocar em foco uma vilã conhecida por perseguir e tentar matar filhotes de dálmatas – algo muito difícil de se tornar, em qualquer cenário, um ato defensável. O que a Disney faz no filme lançado no último dia 27, no entanto, é muito mais ousado que isso: eles reinventam a história da famosa vilã sem reabitá-la como uma vítima e reinterpretando suas características centrais sem extirpá-las.

Se considerarmos o histórico mais recente de tratamento de certos vilões tradicionais, no entanto, percebemos que o caso não é inédito: outros filmes recentes já vinham explorando o passado desses personagens que fazem parte do imaginário popular e que costumam ser tão ou mais interessantes quanto os protagonistas das histórias. A Cruella, por exemplo, sempre me chamou atenção por suas roupas extravagantes e fabulosas que destoavam daquelas usadas, em geral, pelas vilãs femininas, em geral variações sobre o tema geral da “bruxa má”. Sua ostensiva ambição, seu estilo original e sua aparente crueldade sempre me intrigaram.

Algo semelhante, em termos de reconstituição reabilitadora de personagens tidos como antagonistas, foi o que aconteceu, com sucesso, nos longas “Malévola” e “Coringa”, ainda que com resultados muito diferentes. Ambos os filmes, no entanto, se aproximaram ao explorar a personalidade desses personagens e o conflito inicial que os fez chegar onde chegaram, num movimento interessante de alargamento do olhar para trazer à tona um possível lado oculto de uma narrativa supostamente já muito conhecida. O que acontece em “Cruella”, no entanto, é diferente do que se passa nesses outro dois longas: ali não se busca resgatar um passado em que a vilã aparece como vítima original, como acontece nos dois outros filmes, mas se coloca em xeque que ela de fato tenha praticado as vilanias que fizeram a sua fama. Revemos, então, a mesma personagem de sempre, mas desta vez com camadas de histórias e motivações às quais antes não tínhamos acesso. O que caracteriza Cruella, afinal, não são apenas os dálmatas. E para acalmar o coração, um alerta de spoiler: no filme, ainda bem, Cruella não maltrata ou mata nenhum animal. Pelo contrário, eles se tornam seus aliados.

O longa começa com Estella, uma menina conhecida como rebelde na escola apenas por reagir às pessoas que a espezinham em função do seu singular cabelo bicolor. Declaradamente diferente, desde o início, a personagem mostra que de fato tem um lado radical e não admite qualquer tipo de agressão, revidando sempre – e, consequentemente, sendo punida pela escola. Sua mãe, muito diferente dela, elabora a situação estabelecendo então que sua filha possui dois lados: Estella, a garota boa e doce, e Cruella, a versão descontrolada e má.

Considerando esse esquema geral da personalidade da filha, a mãe recomenda sempre que Estella não deixe Cruella vir à tona. De resto, mãe e filha mantêm uma boa relação, e a primeira inclusive incentiva a filha a buscar seu sonho de estudar design de moda, e para isso tenta levá-la para Londres. No meio do caminho, no entanto, Cruella perde a mãe de uma maneira que marca demais o seu próprio destino e a faz tentar manter uma de suas faces sempre escondida.

Entre morar na rua e aprender a roubar, a agora quase obediente Estella passa a viver com dois amigos formando uma espécie de pequena “gangue”. Com esquemas detalhados e astutos, enfim um deles se movimenta para ajudar a parceira a conquistar um emprego no qual ela pudesse explorar seus talentos ligados à moda. É a partir desse emprego, assim, que ela conhece a Baronesa.

Ao ser contratada pela Baronesa, então, vemos o filme caminhar pelo mundo da moda com maestria, explorando uma dinâmica que lembra muito aquela que já se via no filme “O Diabo veste Prada” – ainda que com um novo tom. A Baronesa, afinal, parece já encarnar as características de uma mulher poderosa, impetuosa e que despreza os outros – enquanto Estella, subserviente, busca obedecer e se esforça para ser notada.

Em um ponto importante da narrativa, no entanto, Estella vê suas duas personalidades sendo confrontadas novamente: Cruella precisa vir à tona para que ela exerça um plano, com seus dois amigos, que busque justiça para sua mãe. É nesse momento, então, que Cruella começa a fazer aparições chocantes nos desfiles da Baronesa, enfrentando a hierarquia antes estabelecida entre elas e criando um impacto cultural por essa estética de rebeldia, tão diferente da postura mais classuda que marcava a sua antecessora.

Cruella, no entanto, como vamos observando ao longo do filme, não é quem imaginávamos. Ela não é uma simples versão má de Estella, mas a sua versão mais ambiciosa, excêntrica, chamativa e impetuosa. A versão que revida, que se vinga, que não se curva e que vai atrás do que quer.

A principal sacada do filme, nesse sentido, é mostrar como mulheres tendem a ser vistas sob lentes preconceituosas e estereotipadas que as condenam de antemão mesmo que elas não mereçam. A tensão entre Cruella e Estella, portanto, passa a ser percebida menos como um conflito entre uma face “boa” e outra “má” da mesma pessoa, e mais entre sua face socialmente domesticada e a outra que se mostra condenada por ser mais livre e audaciosa.

No filme, afinal, Cruella não exerce sequer um único ato verdadeiramente cruel – apesar de às vezes se mostrar agressiva, explosiva e inventiva até demais. Quando parece ter chegado às fronteiras da loucura, no entanto, como se fosse uma espécie de Coringa feminino, acontece uma virada central para a história. E vemos que a personagem principal não é vítima, vilã, nem mocinha: é a anti-heroína perfeita, cheia de criatividade, carisma e estilo.

É por isso que, a meu ver, esse é o filme que faz uma releitura mais interessante e complexa da história original, sendo o melhor live-action da Disney até agora. Não sabemos o que vem pela frente para Cruella, ainda mais se considerarmos que a narrativa do filme apresenta a leitura dela a respeito da sua própria história. Tampouco temos como garantir que nossa narradora é confiável, afinal ela mesma reconhece, em algum momento, que possui uma tendência para a agressividade. Mas podemos dizer, com razoável segurança, o filme em questão se constitui como uma obra original, inventiva e excêntrica – digna de uma personagem principal que conseguiu, dentro e fora do filme, revolucionar sua própria história.

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  • Elisabetta Mazocoli

    Elisabetta Mazocoli é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisa tensões e confluê...

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