Falar sobre sexo e sexualidade continua sendo um tabu na Guiné, mesmo após variadas iniciativas para trazer a público a questão do HIV/AIDS e de outras infecções sexualmente transmissíveis. Educar para prevenir seria a melhor estratégia para combater a desinformação e incentivar a tomada de responsabilidade das pessoas pelo cuidado com a sua saúde. Porém, ao consideramos a nossa estrutura social e cultural, o que nos resta são poucas alternativas para esclarecer a população sobre o assunto e alguns raros parceiros dispostos a enfrentar este desafio.

Historicamente, a prostituição é uma das mais antigas profissões. Mas reservo minhas críticas ao fato de ser considerada uma profissão, pois não há, em nosso país, nenhuma garantia de direito trabalhista para as e os “profissionais do sexo”. Trata-se de uma prática não legalizada e estas pessoas seguem sendo exploradas de diferentes formas: pelas condições em que vivem, pela maneira como são tratadas socialmente e pelos riscos a que estão expostas.

Sabemos que a exploração sexual existe em nossos bairros, pois temos conhecimento, inclusive, dos lugares onde se concentra a maioria das mulheres e homens que comercializam o sexo. Em muitos casos, conhecemos de perto essas pessoas, mas nada fazemos a respeito. Elas permanecem desassistidas, quase que por completo.

O controle sanitário sobre esta atividade é praticamente nulo, sendo inexistente qualquer política pública para essa população. Quando muito, algumas iniciativas de organizações não-governamentais disponibilizam recursos pontuais para orientação sexual básica e/ou tratamento de problemas específicos, como é o caso da contaminação pelo HIV e outras doenças infecciosas. Em raras ocasiões, encontramos projetos sociais que oferecem cursos profissionalizantes como costura, mecânica, a fim de estimular alternativas de trabalho para essa população. A preocupação maior tem sido em relação aos aspectos de saúde física.

Recentemente, colaborando com um desses projetos liderados por uma ONG na Guiné, tivemos a oportunidade de sensibilizar mulheres e homens sobre a importância de conhecerem seu status sorológico, a fim de se tratarem em caso positivo e/ou de se prevenirem contra as doenças sexualmente transmissíveis. O programa oferecia uma abordagem integral: educação sexual, preservativos, consulta médica e psicológica, exame para detecção do HIV e posterior tratamento quando necessário. Mesmo com um trabalho de campo cuidadoso e persistente, o engajamento das pessoas foi muito pequeno em relação ao que sabemos, na prática, existir de fato como realidade. O tabu para falar e tratar destes assuntos é o inimigo principal das estatísticas. Não conseguimos registrar a real necessidade e o panorama insiste em manter mulheres e homens em situação de vulnerabilidade.

Entendo que a prostituição, sobretudo feminina, é maior do que meramente a questão sexual pode representar. Pessoalmente, me sinto incomodada com alguns fatos que ilustram um pouco esta complexidade. Por exemplo, somos um país essencialmente muçulmano, em que os homens estão autorizados a se casarem com até quatro esposas, mas eles continuam frequentando os locais de prostituição. Há homens que mantêm programas com as mesmas mulheres, enquanto suas duas, três ou quatro esposas ficam em casa cuidando da família. Do ponto de vista religioso, esse comportamento pode até ser contestado, mas a comunidade fecha os olhos por se tratar de homens. A “instituição sagrada” do casamento naturaliza este tipo de comportamento e as famílias seguem imunes.

O que não significa que as mulheres estejam submissas às suas tradições familiares. Ao contrário, um novo fenômeno vem se destacando em nosso país: cada vez mais as mulheres estão reivindicando a liberdade sexual. É o que se passa com algumas mulheres da “alta sociedade” que têm grande poder aquisitivo e buscam homens, sobretudo mais jovens, para atividades sexuais, em troca de privilégios e bens materiais. Estes jovens tornam-se “protegidos” e ficam à disposição para atender suas parceiras sempre que elas quiserem. Eles encaram isto como uma forma de acender socialmente.

Outra ideia de ascensão social bastante enraizada no imaginário coletivo é a da mulher negra ser vista com homens brancos. Em geral, são estrangeiros que vieram trabalhar na Guiné por conta de alguma organização ou empresa internacional e acabam se envolvendo com as “nativas”. Na maioria das vezes, são casos passageiros e a jovem apenas serve de “companhia sexual” enquanto dura a estadia dele no país. Logo o sonho de se casar com um “expatriado” e conquistar uma vida material melhor se dilui, mas as meninas continuam suas investidas, de olho nos estrangeiros que não param de chegar. Sei que, em outros países africanos, o mesmo acontece também com homens negros que procuram turistas brancas, dispostas a aventuras sexuais. Aliás, a exploração sexual a partir deste contexto (trabalhadores expatriados e/ou turistas) tem um contorno muito específico, que mereceria um estudo à parte.

Há também um antigo fenômeno conhecido da nossa sociedade, a que definimos como “prostituição velada”. O sentido aqui é praticamente literal, pois são mulheres que usam o véu para preservar sua aura de religiosa, mas exercem a prostituição disfarçadamente, mantendo alguns parceiros na própria comunidade onde moram para garantir seu sustento e sua condição de vida.

São muitos os desdobramentos dessas questões todas, mas o que eu gostaria sublinhar, de fato, é que, em nenhuma das situações mencionadas, as pessoas se preocupam com o sexo protegido. O uso de preservativo, tanto masculino quanto feminino, não é acordado e muito menos imposto por nenhuma das partes. Com isto, assistimos a um crescente número de novas infecções pelo HIV, o que contradiz os esforços e avanços já alcançados na detecção e tratamento deste vírus. Fica claro, mesmo que de uma maneira simplista, que é fundamental tocarmos mais nestas temáticas e discutirmos detalhadamente as entrelinhas, pois sexo, sexualidade e prostituição estão interligados entre si e com outros valores e crenças socioculturais, delineando nosso comportamento e impactando diretamente nas estatísticas do HIV/AIDS.

* Versão em português elaborada por Andrea Silveira, autora da biografia da Maimouna Diallo sob o título: “Guinée Fagni: a trajetória de uma mulher africana – a história de todas nós”, que pode ser baixado gratuitamente em PDF e/ou E-Pub.

 

 

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  • Maimouna Diallo

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