O que fazer com todos esses minutos de um tempo que já não é regido pelo cronos inventado e forjado para acorrentar nossas asas. Qual escrita possível qual escuta sustenta o caos de todas as vozes. Não são perguntas, não sei se busco algo nem respostas acho que vou ter alguma coisa qualquer antes do vírus, um tosco dedo sujo furando minha medula, me partindo em duas. Hoje me cobre um céu azul demais para que não pense agora no verde do mar me curando todas as chagas e onde possa misturar minhas lágrimas àquela mulher parideira de peixes que engoliu homens e embarcações e chegou em terras brasis em naus de sangue. Um censor qualquer montado no meu trapézio de cimento e dor balança a cabeça e dá cambalhotas, é tipo o saltimbanco do Zaratustra, o louco da Hilda, ele me diz num esgar que há pessoas morrendo na sarjeta de vírus fome vício sem teto sem céu, que não tem mar, que não tem literatura, que não tem encontro com mulheres nuas e grávidas de chamas e poesia, que tem encontro diário noturno com o horror com o horror com o horror como nos hospitais também nesse exato momento que não estão numa tela noticiados pela frieza exata de âncoras, mas compartilhando o real de cheiros sem fantasia, as máscaras da desgraça, o muito pior que as séries assustadoras de além mundos prováveis e afinal eu sabia que tudo bem poderia acontecer e já estava acontecendo e de que adianta que agora há mais ar puro se o vírus empesta o ar e que bom que os cachorros que todos os bichos não pegam a peste mas já me disseram que leões enjaulados em zoológicos entristecem as jubas com o peso da doença, até eles os reis de nada agora reis de desenhos onde ganham atributos humanos demasiado humanos. Há cansaço demais nas teclas com letras e tudo que tento me parece digno de um riso sarcástico seco velho. Só consigo nesse momento tocar autômata estas letras pretas porque já nem me importo com o ridículo de não ter nada a dizer, de ter vontade mesmo de sair gritando pelas ruas tão cheias de melancolia, eu preciso confessar que os silêncios das ruas, as imagens do chão ensolarado sem os passos apressados dos regidos por cronos, o cruel filho do capitalismo selvagem, quase me levam a uma espécie de torpor, quase gozo, quase aquilo que deve acontecer com quem medita e chega naquele lugar vazio de pensamento, de desejo, uma paz uma paz uma paz não vou conseguir essa paz das ruas na minha cabeça porque dentro dela de repente pululam as ambulâncias os caixões as contas pra pagar a asma e a velhice de muitas pessoas que amo, sem falar na diabetes na saudade na hipertensão, todas as comorbidades e as da alma também. Não sei falar política economia normalidades ministérios conchavos e temo perder a capacidade de conjugar o nós. Eu juro que minha intenção primeira era fabular uma godiva circe salomé montada nua num unicórnio líquido lilás anunciando arcos-íris e amores livres e muitas reuniões em fogueiras dançantes com música despencando das folhas prateadas de árvores falantes em noites esporulando plenilúnios em fúria. Mas há conspirações desde sempre que articulam para fabricar mordaças fixas, para pregar com pregos definitivos nossas línguas sedentas. Só por isso não calo hoje, porque ainda quero, malgrado as equipes dos desertos sem cor, juntar minha língua a sua e rechear os minutos de solitude com beijos de agonia e muita saliva pra molhar a secura dos nossos dias.

*Lu Tiscoski

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