“Por volta dos meus 3, 4 anos de idade, eu sofri o meu primeiro abuso e, consequentemente, muitos outros aconteceram. E, por último, foi aos 13 anos de idade, com um velho que me encurralou numa parede. Eu estava apenas de camiseta e com a parte de baixo do biquíni. Ele passou a mão dele no meu corpo todo, e eu não falei nada, e não fiz nada, mas quando ele tentou me beijar, eu o empurrei e saí chorando.” Esse relato, repercutido recentemente, é da apresentadora Xuxa Meneghel, mas comum a outras tantas mulheres que recordam de uma infância marcada por violências.

São falas com conotação sexual, olhares de desejo e toques invasivos voltados a meninas, que veem em seu crescimento e sua sexualidade algo a ser vigiado, para que nenhum velho entenda que “pintou um clima”, autorizando a violação de seus corpos.

A fala de Jair Bolsonaro, Presidente da República, narrando que “pintou um clima” com meninas de 14 ou 15 anos, o que o levou a pedir para ir à casa delas, onde, em um sábado pela manhã, estariam se arrumando para “ganhar a vida” joga luz sobre a banalização da pedofilia no Brasil.

De acordo com o IBGE, no ano de 2019, cerca 20,1% das meninas escolares de 13 a 17 anos já foram tocadas, manipuladas, beijadas ou passaram por situações de exposição de partes do corpo, contra sua vontade. E 8,8% das meninas informaram que foram obrigadas a manter relação sexual contra a vontade alguma vez na vida (PeNSE, 2022).

Esses dados evidenciam o quanto a pedofilia faz parte de nosso cotidiano, tanto por aquelas meninas que sofrem, não raro caladas, as violências, quanto por homens, que estupram, violam, corrompem e estimulam por meio de discursos a perpetuação dessa cultura. 

Bolsonaro, em defesa de sua fala, disse que “pintou um clima” apenas para uma conversa e que o termo “ganhar a vida” não se referia à exploração sexual, mas à sua preocupação em relação à vulnerabilidade das jovens. Preocupação? De acordo com o estudo Mapear, da Polícia Rodoviária Federal, em parceria com a Childhood Brasil, entre 2019 e 2020 foram identificados 3.651 pontos vulneráveis à exploração sexual, com um aumento de 47% em relação ao total identificado no biênio anterior. Não é apenas uma expressão ou uma brincadeira, é a realidade de crianças e adolescentes brasileiras. 

Os números nos revelam quem são as principais vítimas de violência sexual no país. De acordo com o 14º Anuário de Segurança Pública, em 2021, no Brasil, 75,5% de todos os casos de estupro foram cometidos contra crianças e adolescentes. São, pelo menos, 45.076 casos (FBSP, 2022), afora aqueles que permanecem subnotificados e silenciados. Estamos falando da cultura do estupro, intimamente ligada à cultura da pedofilia.

No ano de 2015, o Master Chef Júnior foi exibido pela Rede Bandeirantes. O que deveria ser um programa divertido, com crianças apresentando seus talentos culinários em uma competição, tornou-se tema de pedófilos. Uma menina de 12 anos, Valentina Schulz, recebeu diversos comentários sobre sua beleza, grande parte com conotação sexual. A mobilização em torno do caso levou a organização Think Olga à criação da campanha #primeiroassédio, convidando mulheres no Twitter a compartilhar histórias sobre o primeiro assédio sofrido. Com as respostas obtidas, constatou-se que a idade média do primeiro assédio é de 9,7 anos e 65% dos crimes são cometidos por conhecidos.

Como podemos ver, casos de assédio ainda na infância não são exceção, mas a regra, com sérias implicações na vida de mulheres e meninas. Vitória, hoje adulta, conta que, em razão da violência sofrida, não denunciou quando foi estuprada aos 15 anos, eis que temia um novo linchamento.

Para muitos, o que ela, Xuxa e a maioria das mulheres passou não são violências, mas brincadeiras de mau gosto, fatos isolados, mas isso tem um nome: pedofilia!

“A violência sexual contra a criança e o adolescente é uma realidade. Eu fui vítima e agora você sabe!”. Com essa frase, o Instituto Liberta propõe a campanha #AgoraVcSabe, na qual adultos que foram abusados, violentados ou explorados sexualmente quando crianças expõem suas histórias, tornando visível essa forma de violência.

A campanha está relacionada à história da diretora do instituto, Luciana Temer, que sofreu a primeira violência sexual aos 13 anos, sendo novamente violentada aos 27 anos, quando foi estuprada em um assalto. Luciana conta que a vergonha a impediu de denunciar o fato, o que é comum à maioria das vítimas, eis que sofrem com culpabilização e com a naturalização da violência. 

A naturalização da violência sexual contra crianças se dá por meio de discursos pedófilos e da banalização do sofrimento das vítimas. O presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro, considera natural “pintar um clima” com meninas. E agora que você sabe?

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Lívia de Souza

    Feminista, doutora em Ciência Política, mestre em Direito e pesquisadora no Grupo Violência, Gênero e Saúde, na Fiocruz...

Últimas