Muito se falou neste final de semana sobre o futuro do Twitter. A mídia mundo afora cobriu a aquisição da plataforma pelo herdeiro de minas de esmeraldas sul-africano/canadense naturalizado norte-americano Elon Musk. As reviravoltas em transações, fusões e aquisições, iniciadas em 14 de abril de 2022, foram finalmente concluídas em 27 de outubro. 

Publicações diversas – e a primeira que vi foi na sexta-feira (18/11) no UOL – divulgaram ao longo dos últimos dias as projeções que foram feitas na fachada da sede da rede social em San Francisco, nos Estados Unidos, chamando o empresário, dentre outras alcunhas, de  “bajulador de ditadores” e “moleque medíocre”.

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Projeção com xingamentos contra Elon Musk no prédio do Twitter, nos Estados Unidos. Imagem: Reprodução. Via UOL

Segundo a BBC, em nota veiculada também na sexta-feira 18/11, no g1, funcionários do Twitter foram surpreendidos com o fechamento temporário de escritórios, decisão tomada por Musk em meio a saída em massa de colaboradores de sua nova empresa. Conforme reportado, após Musk ter realizado uma enquete para medir quantos de seus empregados estariam dispostos a trabalhar por “longas jornadas” e “em alta intensidade”, pedindo aos que não estão para que saíssem, muitos deles de fato saíram.

A hashtag #RIPTwitter (RIP é a sigla em inglês para Rest In Peace, que em tradução fica Descanse Em Paz) esteve entre as mais usadas na rede social na sexta-feira, embora oficialmente não haja previsão para o Twitter acabar. A empresa é privada – Musk a retirou do New York Stock Exchange, onde esteve listada até 8 de novembro desse ano, e em tese pode fazer o que quiser com sua organização. Para dar dois exemplos do embaraçoso espetáculo que vem sendo sua administração, Musk no final de semana reativou a conta do ex-presidente Donald Trump (que se manifestou dizendo que não vai voltar ao Twitter, eita), e também postou imagens do time que ficou, que replico abaixo.

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Foto publicada no Twitter por Elon Musk após reunião no sábado 19. Vi esta imagem no dia 20 de novembro, dia da consciência negra no Brasil, e ela me fez pensar no conceito de antinegritude, que é bem explicado no texto “Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade”, do professor de Antropologia na Universidade da Califórnia João H. Costa Vargas, publicado na Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2020. 

Para além destas breves notas sobre a gestão e o racismo do bilionário, quero comentar a falácia com que ele se autodenomina: “absolutista da liberdade de expressão”. Esse conceito é tão insidioso quanto a famosa invenção do cristianismo, que é empregada como inimigo comum por conservadores contemporâneos e chamada “ideologia de gênero”. Ambos são espantalhos retóricos criados para fins de manipulação comunicativa. 

São terminologias-sofisma, criadas para simular conceitos-fantasma. As duas expressões se utilizam de palavras-chave, cujos sentidos não são exatamente disputáveis (ainda que não possam ser definidos como exatamente fixos), que então são colocados em ordem/forma de slogan, com a intenção de perverter seus sentidos conceituais, no objetivo de causar disputas sobre a própria realidade. 

Existe ideologia e existe gênero, e existem ideologias pautadas em gênero; o patriarcado é a mais óbvia delas, como sugiro no meu livro recém-lançado pela Editora Zouk, Patriarcado Gênero Feminismo. Mas não existe “ideologia de gênero” como ação orquestrada de colonização, contra a qual um ataque precisasse ser feito.

No entanto, a perversão da realidade foi tanta – e causada pela própria existência da expressão! – que cá estamos, num contra-ataque a assombrações que foram tornadas horrores concretos não pelos fatos, mas pela força da condução deliberada e capciosa da imaginação e do medo. 

A existência de sentido em permutações de palavras que levem à equalização dos conceitos de “liberdade” e “absolutismo” tampouco resiste à observação da realidade com o uso da lógica e da razão. Os acontecimentos desta semana deixam isso ainda mais patente: o autoproclamado “absolutista da liberdade de expressão” enxotou de sua empresa aqueles os que expressaram com liberdade o que pensam dele. Fica muito evidente que Musk é um absolutista da própria liberdade de expressão. 

Muitas frases de efeito não têm raiz na realidade, e “ideologia de gênero” e “absolutista da liberdade de expressão” são duas delas. A repetição maciça e massiva delas como possibilidade do real é que cria realidades paralelas, pela linguagem – e que acaba por nos sequestrar para dentro de seus discursos mentirosos. 

Não viso persuadir a leitora de que seja impossível ser um absolutista da liberdade de expressão, nem de que ideologia de gênero não exista como exército; o raciocínio lógico, balizado pelo que se pode mensurar pelas ocorrências da realidade (ao invés de expressões de desejo), é boa ferramenta com que enxergar e compreender a questão.

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Ele fez o “antes e depois” dele. Imagens via Business Insider.

E vou arrematar este texto sobre Elon Musk com uma nota sobre sua aparência: como observou a comunicadora e poeta Lana de Holanda Pelech em suas redes (já há algum tempo, em um story de Instagram cujo link infelizmente não guardei), Musk também fez um bocado de cirurgias de afirmação de gênero. Adiciono que a obtenção de sua aparência corrente (queixo quadrado, peito de pombo, cabelo abundante) se deu pela acentuação de características de masculinidade hegemônica por intervenções cosméticas. Homens cis brancos fazem performance de gênero – e não é pouco. 

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  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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