Sobre o nosso “pacto brutal” com o punitivismo

A grande repercussão do documentário “Pacto Brutal”, que narra as circunstâncias do assassinato da atriz Daniella Perez, a partir do depoimento da mãe, Glória Perez, fez com que revisitássemos um caso emblemático dos anos 90 e deu a oportunidade de observarmos o resultado da resposta punitiva hoje, 30 anos após o ocorrido.

Exposto e explorado em inúmeras manchetes, com muito sensacionalismo, o caso movimentou estruturas sociais da época, chegando a gerar mobilização popular para uma mudança legislativa que passou a classificar o homicídio qualificado como crime hediondo e tornou a punição bem mais severa. O documentário que revisa essa história deixou no público a sensação de “impunidade”, de falta ou insuficiência de consequências que trouxessem reparação ou ao menos ressocialização dos autores do crime, apesar de terem sido condenados e terem cumprido a pena imposta, seguindo as regras do processo criminal.

É assim que funciona a resposta social aos crimes “bárbaros”, que chocam pela violência e brutalidade, quando cobertos ostensivamente pela mídia: Nos indignamos, pedimos por justiça e traduzimos esse desejo no reforço de estratégias punitivistas, que tornam o sistema penal ainda mais violento. Mas não demora para que outro caso apareça e recomecemos o mesmo ciclo, sabendo que o resultado não será satisfatório e que amanhã vamos passar por tudo isso, de novo.

Daniella, Eloá, Tatiane, Ângela… nomes que ganharam destaque na imensa lista que aumenta a cada sete horas, quando mais uma mulher é assassinada em razão do gênero no Brasil (quinto maior país em feminicídios do mundo), ainda que as leis estejam cada vez mais severas e a taxa de encarceramento suba descontroladamente.

A legislação muda, o punitivismo aumenta, mas, ao contrário do que se espera, a violência não diminui. Buscamos na personalidade daqueles que denominamos como “monstros” e “psicopatas”, motivações que superam a esfera do indivíduo e estão arraigadas no corpo social. Tratamos um problema que é estrutural com respostas individualizadas, que culpabilizam, mas não responsabilizam, que legislam pela exceção e não consideram a coletividade.

Mesmo com inegáveis avanços alcançados na legislação, como a Lei Maria da Penha, que completou 16 anos no último mês e ajudou inúmeras mulheres na conquista de algum grau de liberdade, ainda somos revitimizadas, desacreditadas e desamparadas pelas mesmas instituições que supostamente existem para nos proteger.

Ainda esperamos por prevenção e reparação com ferramentas jurídicas que na prática servem somente para ameaçar autores de atos violentos com mais violência. Fingimos acreditar que provocar dor em quem nos machuca é o que vai garantir que estejamos seguras, confundindo justiça com vingança e nos afastando cada vez mais de soluções adequadas, que precisam ser criadas pela comunidade e para a comunidade.

Individualizar pautas como a violência de gênero, que têm raízes profundas e são de responsabilidade de toda a sociedade, também faz com que a ideia de prevenção seja individualizada, colocando sobre a potencial vítima o peso incalculável de proteger a si mesma.

Regras de comportamento vão sendo criadas, de forma que transferem toda a responsabilidade de evitar a violência para as pessoas que são alvo delas.  A privatização da segurança é tão extrema que chegamos ao absurdo de eleger um presidente que sente orgulho em manifestar publicamente sua misoginia, enquanto tenta convencer às mulheres de que “legalmente a arma é uma garantia para que você não sofra violência dentro de casa”, e mente, omitindo as evidências das estatísticas: mulheres tem maior chance de serem vítimas de feminicídio dentro de casa e a presença de armas de fogo na residência aumenta o risco de serem mortas pelo parceiro (Anuário de Segurança Pública, 2022).

Dessa forma, sob o pretexto de que providências individuais vão nos proteger e de que é preciso mudar e limitar nosso comportamento para evitar que a violência aconteça, o controle social se solidifica pelo temor, impedindo o avanço das mulheres.

Penas mais longas não garantem nossa liberdade, tampouco a posse de armas de fogo. A eficácia dessas medidas é uma falácia que não podemos mais sustentar, pois enquanto tratarmos a violência contra a mulher com fórmulas abstratas que não consideram a estrutura patriarcal predominante na sociedade e a cultura de objetificação e desumanização dos corpos femininos presente nessa estrutura, nenhuma mudança efetiva será realizada. Seguiremos servindo “impunidade” como resposta e delegando às mulheres a responsabilidade pela própria segurança, limitando nossos caminhos e criando obstáculos impossíveis de transpor.

Enquanto nos indignarmos com os casos pontuais que recebem maior atenção da mídia e não entendermos que crimes de gênero são epidêmicos e têm natureza sistêmica, não trataremos a dor social que essas violências causam e não seremos capazes de promover responsabilização, menos ainda reparação.

É preciso olhar o sistema penal como um todo, não somente o tempo da pena ou o desfecho de certo caso específico. E que nos perguntemos: como sanar essas dores? Como atender aos anseios das pessoas envolvidas nessas situações? Como buscar uma resposta que seja minimamente reparatória?

Para real prevenção, são necessárias políticas públicas capazes de impedir que crimes misóginos continuem acontecendo com tanta frequência e sejam socialmente naturalizados. Reparar os danos causados pela violência contra a mulher é um trabalho coletivo. As transformações precisam ser realizadas na raiz do problema, que é a desigualdade de gênero que orienta a forma como nos relacionamos. Não haverá mudança social se não estivermos dispostos a mudar a base e reconstruir o terreno onde essas relações se dão. 

Nada disso se resolverá em uma canetada. Leva tempo e dá trabalho para lidar com os incômodos e contradições de cada um e da vida em sociedade, porque não é nada fácil reconhecer o monstro em si e admitir o racismo, o sexismo, o classismo e todo tipo de preconceito que aprendemos nesse sistema e reproduzimos diariamente nas nossas relações. 

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  • Lívia Reis

    Especialista em Ciências Penais, co-fundadora do Coletivo Nós Seguras e do Projeto Transversais, feminista, abolicionist...

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