Eu sou uma pessoa gorda. Tipo. Gorda. Eu não sou fofinha, recheadinha, fortinha, com alguns quilinhos a mais.  Eu sou G O R D A.

Já me chamaram de “a curva inusitada”, numa exposição onde eu estava exposta nua. E  G O R D A. Eu tenho um abraço maravilhosamente quente, macio, envolvente e acolhedor. G O R D O.

Mas também sou G R A N D E. E, mesmo se eu fosse porventura magra, continuaria sendo G R A N D E. Quase alta. Meu número de camiseta é 8G, ou seja GGGGGGGG.

E eu não me acho bonita. Mesmo com esse movimento sobre gordofobia, corpos diferentes fora do padrão, mesmo gostando e achando bonitas mulheres gordas, me sinto feia. Olhar no espelho pra mim sempre foi uma tortura. Porque não olhava a mim, meu sorriso, olhos, pele macia.  Olhava uma G O R D A.

Mas, em algum momento sutil e com muita terapia comecei a gostar de mim. Comecei a me olhar no espelho e me achar bonita. Comecei a perceber outras nuances que a obesidade quase esconde, mas não esconde. E passei a buscar minhas mãos grandes, fortes, minha barriga lisa, macia, meu toque sensível, quente e meu abraço protetor, e, principalmente meu rosto. Lindo. Bonito mesmo.

Movimento pequeno, sutil, diário, crescente. Delicado, até.

Mas… vira e mexe eu caio em maratonas de séries e a escolhida foi baseada num personagem do Neil Gaiman, Lúcifer.  Amei, e devorando episódios com questionamentos pertinentes a céus e infernos, demônias lindas, Lúcifer – um homem lindo, uma detetive linda, um policial lindo, uma advogada implacável linda (Tricia Helfer, maravilhosa), um anjo negro sarado e lindo, uma terapeuta linda, uma criança linda, até os assassinados eram lindos, inclusive a fera do laboratório forense – linda, o comandante da polícia – lindo. Tudo dentro dos padrões holywood. Magros, sarados, roupas ousadas, jovens. Até as asas de Lúcifer eram lindas e seu rosto de diabo, vermelho, enrugado, nariz adunco – lindo.

Foi então que entre um episódio e outro, na calada da noite silenciosa, entra a tela preta do monitor e reflete meu rosto. Feio.

Muito feio. Gordo. E só o que vi foi o gordo, o sisudo, o triste, a papada. E foi aí que caiu uma imensa ficha intergaláctica no orelhão dos insights. De como a mídia entra no cérebro e nas nossas veias emocionais e cria padrões. Padrões de comportamentos, de valores, de como minha vida deveria ser, cheia de aventuras e justiça seletiva, absolutamente cisgênero (mesmo que Lúcifer seja bissexual).

Cria critérios do que é C E R T O e do que é L I N D O. E quanto mais distante das nossas vidas cotidianas, melhor a referência inalcançável. E uma resposta simples do que te deixa abatido, encurvado, submisso.

Todo cuidado é pouco, porque não nos atinge em teorias e textos racionais. Nos atinge na emoção, numa outra via sutil, um canal desavisado e puro, onde são impressas as vontades alheias de poder sobre nós.

Não estou falando das virtudes falsas que nos levam a um falso sucesso como competência, eficiência, popularidade. Estou falando da generosidade, de habilidades artísticas ou artesanais, da voz, da capacidade criativa, da empatia, da alegria, da capacidade de amar, de ter tanto a dizer, da capacidade de ouvir, de atuar, de dançar, de contar histórias, de amar os bichos e as plantas, de olhar profundo, tantas outras características que nos fazem felizes, confiantes, realizadas, indomáveis.

Hora de buscar o que nos empodera, inspira, o que em nós é belo e lindo, e não mais o que nos submete a padrões que nos oprimem.

 

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  • Chris Mayer

    Chris Mayer é fotógrafa, jornalista, escritora e palhaça. Dedica-se à fotografia de palco, dramaturgia cômica, crônicas...

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