Em meio a tantos filmes frenéticos e exuberantes, vemos quase com surpresa o lento e delicado Nomadland ganhar o Oscar de Melhor Filme em 2021. Um trunfo do filme deve ter sido o fato de que ele explora a vida nos Estados Unidos de uma perspectiva bem distante daquela assumida por toda uma tradição de vencedores.

O longa de Chloé Zhao, afinal, nos leva a uma estrada incerta que expõe uma coleção de fraturas geradas pelo sistema capitalista no que há de mais íntimo na vida das pessoas. Afastando-se dos clichês quando pensamos no país, vemos uma nova rota sendo aberta por uma mulher já envelhecida que ainda busca encontrar seu próprio caminho e dar sentido às próprias memórias. E que, tendo perdido sua casa e seus vizinhos, precisa repensar o sentido que ainda podem ter coisas como um lar e uma comunidade.

No centro do filme está a personagem Fern (interpretada por Frances McDormand), uma mulher que morava nas acomodações cedidas pela empresa Empire, na qual ela e o marido trabalharam por anos.  Como o fechamento da empresa no meio de uma crise econômica e depois do falecimento do marido, ela se vê de repente obrigada a partir e a assumir uma trajetória de desgarramento crescente.

A partir desse momento, é encaminhada para o mundo dos empregos temporários subqualificados que mudam continuamente suas sedes e vagas, em cargos de substituta, em funções mecânicas para as quais, no entanto, ainda é constrangida a sorrir. Passa a morar numa van que a leva pelo país a procura de mais algum emprego e de mais algum estacionamento mal vigiado onde possa, talvez, estacionar durante uma noite inteira.

À medida em que os caminhos vão sendo percorridos, no entanto, vemos que Fern não está tão sozinha quanto parecia. O filme mostra a personagem se relacionando com um conjunto de pessoas reais interpretando a si mesmas, e assim apresenta histórias variadas de gente que se vê reunida pelo fato de que foi jogada pra fora de uma engrenagem claramente predatória. Com as fragilidades cada vez mais à flor da pele, somos levados então a nos aproximar dos chamados “novos nômades”, que em geral são pessoas mais velhas que parecem querer se afastar do ideal produtivo que quase os devorou, para tentar construir novos laços com a natureza, com os outros e mesmo com os próprios corpos.

Brilhante, ainda, perceber os sentidos do nome que a personagem dá à sua van mobiliada: Vanguarda. Como que sinalizando um último refúgio e também um sintoma avançado de algo maior que está ocorrendo na sociedade como um todo.

Nomadland e novos sentidos

É interessante perceber, ainda, como se dá no filme a relação de Fern com o trabalho. Deixando de ser visto apenas como uma fonte de renda (apesar de ser também, já que os valores pagos pelas aposentadorias são um escárnio) é ali também que ela conhece pessoas, aprende novas habilidades e consegue se distrair das piores dores que carrega. O filme também cria uma visão interessante sobre as pessoas tentando recuperar uma certa independência do sistema, no sentido de aprenderem a resolver suas demandas básicas com as próprias mãos – seja consertar o pneu de uma van, fazer comida e ou livrar dos dejetos produzidos.

Paralelamente a esse esforço de autossuficiência, no entanto, vemos também que vai se desenvolvendo uma noção muito forte de parceria e solidariedade entre os nômades: seja através de escambos, troca de dicas, cigarros compartilhados ou mesmo de velórios improvisados para lembrar os que vão morrendo no caminho.

E é assim, em meio a canções populares, amplos espaços da natureza e diálogos profundos, que o filme consegue criar uma atmosfera própria e envolvente. Sentimos Fern, sentimos as pessoas que ela encontra pela estrada e nos conectamos também com a história deles. Zhao consegue expor não só os caminhos que vão sendo percorridos, mas também os que se cruzando e os outros laços que assim vão sendo tecidos com cuidado e desprendimento, força e leveza, medo e coragem. Fern, afinal, parece cada vez mais ser como um produto do nosso tempo, uma mulher que se vê desemparada quando toda a sua noção de casa e comunidade parece se desmantelar.

Ela se mostra também, no entanto, como uma pessoa que se dedica diariamente a construir laços verdadeiros, se reconectar com a vida, colar pequenos cacos de heranças modestas, tentar montar velhos quebra-cabeças, rever fotos guardadas e pequenas coleções caprichosas de quase nada. E, a partir de certo ponto, é capaz inclusive de perceber que só rememorar já não basta: é preciso seguir criando o sentido dos dias, apesar de um mundo todo que nos incita a desistir disso.

Nomadland
Chloé Zhao, diretora de Nomadland, e a atriz Frances McDormand durante as gravações/Foto: divulgação

Fern também é, nesse sentido, a personificação da história sobre essa resistência à lógica imperiosa do descarte contínuo – seja de coisas, pessoas ou até mesmo de alternativas ao mundo que temos hoje em dia. Seu desprendimento, marcado pelas diversas vezes em que ela resiste a voltar para o ninho de seus familiares, não é ali um desprezo pela “vida comum”, mas uma resistência mais central a abrir mão de trilhar sua jornada. Não por acaso as personagens Swankie e Linda May, suas amigas-confidentes nessa nova vida, partilham tanto com ela desse movimento de repensar o que significa ter uma casa, elos fortes ou felicidade.

Nomadland parece brilhar, pra mim, justamente pela sugestão de que é possível se criar um novo tempo de mais possibilidades e alguma calmaria, de mais desprendimento e, no entanto, de mais ganhos subjetivos.

Quando o personagem de Bob Wells fala que sempre encontra as pessoas na estrada, não importa quanto tempo passe, isso soa como um grande alento num mundo que, para a maioria de nós, as coisas e as pessoas parecem estar sempre em desencontro, o chão instável demais, e todo fim de ciclo parece nos condenar a uma perda irreparável.

Em uma das cenas mais bonitas do filme, já ao final, vemos Fern retornando à sua casa perdida em Empire, tirando a poeira dos móveis e olhando para tudo que deixou para trás com o marido. As xícaras e os protetores que usavam no trabalho já quase representam uma outra vida, aquela da qual ela se lembrava tanto, mas que agora aparecia ali na sua frente, mais palpável e próxima.

No entanto, é ali que ela se desfaz do depósito que ainda mantinha para os velhos guardados e mais uma vez vai embora daquela cidade fantasma: caminha no jardim e entra de novo na van em direção à estrada, ao deserto, ao sol mais uma vez se pondo no mar aberto, aos dias que apesar de tudo ainda podem e devem ser vividos de verdade.

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  • Elisabetta Mazocoli

    Elisabetta Mazocoli é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisa tensões e confluê...

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