Negra sou! A construção identitária de mulheres negras universitárias
Hoje dia 8 de março, dia da mulher, faço o lançamento da série “Escritas de mulheres negras também importam!”, cujo objetivo visa publicações de textos abordando, sobretudo, estudos, pesquisas e produções em geral de trabalhos desenvolvidos por mulheres negras, tanto no ambiente acadêmico, quanto nos outros lugares do cotidiano delas, em busca do reconhecimento das outras formas de saberes e assim, multiplicarmos os espaços e ampliarmos o eco das vozes das intelectuais da periferia igualmente.
No mês de março farei publicações especiais, exclusivamente com algumas que tratam especificamente com as temáticas das mulheres negras.
Nesse projeto o que me interessa mais é o processo de escrita coletiva, no qual a autoria dos textos será também das convidadas para que possamos fugir um pouco dessa lógica e prática da representação e assim promovermos espaços de protagonismos para que haja representatividade, pois, acredito que a representação dentro de alguns contextos e como se configura na prática de algumas movimentos, é também uma forma de silenciamento, considerando que, quando se representa o intuito é chegar a um equivalente, ou seja, ocupar um lugar de alguém, já a representatividade não, o que se busca é garantir que cada pessoa ou grupo seja protagonista de suas narrativas; de suas histórias!
Para o lançamento, a minha convidada é a Érika Costa, mestranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília-UnB. Para o texto de lançamento, pedi a ela que falasse da sua Monografia apresentada na conclusão de sua graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás intitulada: Negra sou! Políticas de ações afirmativas e trajetórias de identidade de mulheres negras na UFG.
Em sua monografia, a autora busca compreender como as estudantes universitárias e negras podem constituir identidades no âmbito da Universidade Federal de Goiás. Ela aponta no resultado final da pesquisa que os espaços como a família, a escola, o movimento social e a universidade podem interferir no processo de constituição identitária, e que essas identidades podem ressignificar elementos, expressando novas formas de identidades.
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Negra sou!
Por Érika Costa*
Quando a Antonilde me fez o convite para escrever esse breve texto falando da minha trajetória acadêmica enquanto mulher negra, fiquei muito feliz por essa oportunidade, pois para mim é uma forma de reconhecimento do meu trabalho. É uma forma também de dizer que eu e a minha vida importam.
A escolha do tema acerca dos processos identitários das mulheres negras partiu da minha vivência enquanto mulher negra. Venho de uma família em que a minha geração é a primeira a cursar o ensino superior. A possibilidade de estudar provocou em mim diversas mudanças em minha trajetória. Na graduação passei a ter conhecimento acerca dos estudos de gênero e raça, através da produção de mulheres negras como Bell Hooks, Lélia Gonzalez, Nilma Lino Gomes e outras como Glória Anzaldúa, etc. Isso foi muito importante por possibilitar a reflexão acerca da minha condição de mulher negra, mergulhei num processo de autoconhecimento, o que costumo denominar de descolonização da mente e do corpo. Essas mudanças despertaram em mim o desejo de investigar o processo de construção das identidades para mulheres negras.
Logo no início da graduação cursei uma disciplina com a antropóloga Luciana de Oliveira Dias e, anos depois, ela aceitou o desafio de orientar a pesquisa para a produção da monografia. Infelizmente a presença de docentes negros/as na universidade é muito pequena, assim como em outras categorias profissionais. Ver uma mulher negra na condição de professora e intelectual foi muito “empoderador”, representatividade importa e contribuiu bastante para a minha formação, como também para a pesquisa que empreendemos, por partir da perspectiva de duas mulheres negras.
Em minha monografia apresentada na conclusão da graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás, Negra sou! Políticas de ações afirmativas e trajetórias de identidade de mulheres negras na UFG, meu objetivo central foi investigar como ocorre o processo de construção das identidades das universitárias negras no âmbito da universidade, por entender que a universidade constitui um lugar que foi criado para um público muito específico, que não contemplava a população negra e indígena até recentemente, ou seja um espaço formado em sua grande maioria por homens e mulheres brancas, o que constitui uma barreira na tarefa do reconhecimento para os discentes negras/os e indígenas. Realizei entrevistas com estudantes cotistas da faixa etária de 20 a 29 anos de idade. Como as estudantes são usuárias das políticas de ações afirmativas, foi necessário atentar-me ao contexto que se tratava a pesquisa, sendo necessário elaborar uma análise institucional de como as ações afirmativas foram consolidadas na UFG. As narrativas empreendidas pelas estudantes indicavam que havia um processo de identitário em que a questão racial não era expressa, e que foi sendo consolidado no decorrer de suas trajetórias. De acordo com as/os teóricos/as dos estudos culturais, as identidades são produzidas através da diferença, é na percepção das diferenças que as identidades são construídas. Todo esse processo, a partir dessa perspectiva, ocorre de forma plural, as identidades não são estáticas. A pluralidade possibilita que haja mudanças nas afirmações identitárias em curso.
No Brasil, ainda vivemos em um contexto em que há uma colonialidade, que permeia a forma como nós pessoas negras somos socializadas. Os livros de História, por exemplo, narram uma história pela ótica eurocêntrica, muitos elementos da cultura brasileira têm sua raiz negra, como o samba e a capoeira, porém esses livros ainda insistem em representar a nossa ancestralidade apenas atrelada a escravidão, subalternizando aqueles e aquelas que também fazem parte da história desse país, e inferiorizando mulheres, homens e crianças negras. A representação social midiática também colabora na construção dessa inferiorização e estigma, por meio da reprodução de imagens estereotipadas e essencializadas. Essa colonialidade nos diz que “vidas negras não importam”, ao intersseccionalizar raça e as questões de classe e gênero, as estatísticas apontam números alarmantes sobre os impactos resultantes da operação do racismo entre a comunidade negra brasileira. As taxas de homicídios de jovens negros são 77% , a violência contra a mulher negra aumentou em 54% nos últimos dez anos. Toda essa conjuntura nos diz que a colonialidade está presente. Isso de algum modo impacta o modo como nós pessoas negras vamos construir nossas histórias de vidas, diante de tal circunstâncias questiono como é construir identidades em uma sociedade em corpo negro não tem valor?
Nas narrativas das estudantes, a questão racial não era tão evidente nas identidades durante a infância, na escola a temática racial ou o ensino da “História e Cultura Afro-Brasileira” não era abordada, e se abordada era pelo viés negativo como a escravidão. A diferença no âmbito escolar era marcada pelo racismo perverso, o cabelo era identificado por meio de xingamentos que não merecem ser mencionados aqui, mas que inferiorizavam as estudantes durante a infância. A falta de representatividade na televisão, principalmente nos programas infantis, em que as apresentadoras em sua grande maioria eram mulheres brancas, loiras, de cabelos lisos e olhos claros, apoiava a compreensão das diferenças. Na adolescência, todas as estudantes afirmaram passar por processos de alisamento capilar, indicando desse modo que a beleza negra não era/é socialmente aceita. O genocídio estético é tão comum na vida de uma adolescente negra, que me reconheço nessas narrativas, por também passar por processos semelhantes.
Para Nilma Lino Gomes, ex-ministra do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, o cabelo compõe um relevante símbolo para a identidade negra. As narrativas das universitárias negras entrevistadas indicam a ressignificação das identidades, como a afirmação valorizada de ser mulher negra a partir do uso do cabelo natural. Essa mudança vai sendo produzida em lugares diferentes, o cursinho popular, a atriz de novela que usa o cabelo natural, o movimento social negro, a presença de outras estudantes negras na universidade, a família, vários elementos de representação apoiam novas configurações identitárias.
Pode até parecer frívolo afirmar-se enquanto mulher negra, ou utilizar o cabelo natural pode ser entendido como apenas uma “nova moda”,mas em contextos sociais iguais ao do Brasil, fazer essa afirmação é uma vitória, usar o cabelo cacheado ou crespo é um ato político, por possibilitar mulheres negras ir contra processos de embranquecimento, um aceitação da beleza negra, de ser negra. De acordo com a intelectual e antropóloga brasileira Lélia Gonzalez, “a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha dentre outras coisas, mas tornar-se negra é uma conquista”. Gonzalez tinha razão, porque a colonialidade existente contribuiu para que a mulher negra tente não ser o reflexo do espelho, mas encaixar em modelos normativos de ser mulher que não cabe às singularidades e as diferenças da mulher negra.
Quando uma mulher negra passa afirmar: “sim, sou negra”, há uma reesignificação do termo “negra”, este não passa a ser interpretado como uma negativa, mas uma afirmativa de empoderamento da própria existência em ser negra, uma categoria política da afirmação identitária. Ao considerarmos essa mudança, o poema “Negra Sou” da poetisa e coreógrafa peruana Victoria Santa Cruz, nos inspirou para o título da monografia. O poema dialoga com o processo de afirmação identitária de mulheres negras, o eu lírico negava a sua condição de ser negra na infância quando ouve alguém gritar: “Negra!” Ela cresce alisa seus cabelos, passa pó em sua face, mas no fundo aquelas palavras lhe diziam: “Negra!” E ao reconhecer essa afirmativa, ela passa assumir essa afirmativa na condição de ser mulher negra expressando através do corpo que sim: “Negra Sou!”.
Afirmar diferenças positivamente é uma êxito. Ser mulher num país como o Brasil em que apresenta altas taxas de violência contra a mulher é um desafio. Ser mulher e negra é superar o machismo e racismo todos os dias. Espero que neste 08 de março tenhamos força para afirmarmos nossas diferenças, possamos existir e re-existir!
Leia aqui o texto completo: Negra sou! Políticas de ações afirmativas e trajetórias de identidade de mulheres negras na UFG
*Bacharel em Ciências Sociais com habilitação em Políticas Públicas pela Universidade Federal de Goiás, integra o grupo de pesquisa Em Prosa: Núcleo de Estudos e Pesquisas do Campo de Públicas e também o Coletivo Rosa Parks: Estudos e Pesquisas sobre Raça, Etnia, Gênero, Sexualidade e Interseccionalidades.