A ilusão de que o racismo é um problema “dos outros” — dos reacionários, dos violentos, dos ignorantes — ainda sustenta o imaginário branco. O antirracismo vira um traço identitário proclamado, mas raramente interrogado. O que se vê é uma repetida recusa em assumir a própria implicação no racismo estrutural, especialmente por parte de pessoas brancas que se identificam como progressistas. A crença de que basta não ser abertamente racista para estar do lado certo é uma das formas mais eficazes de preservar uma característica fundamental do privilégio: o conforto.

Essa negação da própria implicação no racismo se manifesta em dados concretos. Em 1995, uma pesquisa conduzida pelo Datafolha e publicada pela Folha de S.Paulo revelou que, embora 89% dos brasileiros reconheçam a existência de preconceito racial no país, apenas 10% admitiam tê-lo. Outro dado revelador: 87% dos entrevistados concordaram com frases e ditos populares de conteúdo racista, expondo uma contradição entre o que se declara ser e o que se vive na prática.  Essa ilha de antirracismo que imaginamos ser, cercados por “outros” racistas, reforça a estrutura do racismo estrutural e normativo.

Recentemente, ao ser perguntada por jornalistas sobre o silêncio internacional diante do massacre em Gaza, Greta Thunberg respondeu de forma direta: “Racismo”. Sem rodeios. Nenhuma retórica de mediação, nenhuma palavra alternativa. Apenas a verdade: corpos não brancos não geram a mesma comoção pública que corpos brancos.

Nomear o racismo, especialmente enquanto pessoa branca, não deveria ser gesto extraordinário — deveria ser o ponto de partida. Mas, em vez disso, permanece sendo tratado como limite, como “posição radical”. Enunciar a realidade com o mínimo de verdade não pode ser confundido com coragem.

Essa recusa em nomear e confrontar o racismo se reflete na linguagem institucional. Universidades, agências internacionais, fundações e empresas preferem investir em discursos brandos – de diversidade, inclusão, ou equidade  –  a encarar palavras como colonialismo, racismo, machismo, ou supremacia branca. A assepsia linguística é estratégica: suaviza o problema, dilui o incômodo de sua recepção, e esvazia qualquer conflito, preservando o conforto de quem está confortável e protegendo quem é historicamente protegido.

Essa naturalização aparece inclusive na decoração doméstica. Ainda é comum encontrar, à venda em centros urbanos e feiras de design, imagens inspiradas na obra de Debret, que retratam pessoas negras escravizadas lavando roupas, cuidando de crianças brancas, carregando senhores em redes por ruas e matas. Essas peças são vendidas como objetos históricos ou “folclóricos”, tratadas como estética, sem qualquer crítica. A violência se transforma em ornamento. A opressão, em souvenir.

Essa complacência simbólica encontra ressonância nas relações sociais. Como mulher cis branca, convivi a vida toda com muitas outras pessoas brancas, e grande parte resiste ativamente à ideia de que suas escolhas, opiniões e reações estão atravessadas por uma formação racista.

A recusa insistente em escutar, em enxergar, em refletir e se rever, em desconfiar do próprio ponto de vista não é a exceção, mas a regra. Discordar do antirracismo se torna uma questão de “opinião pessoal”. O incômodo é percebido como agressão. O silêncio vira estratégia de autopreservação.

Nos Estados Unidos, as batidas migratórias conduzidas pelo ICE (Immigration and Customs Enforcement – o Serviço de Imigração e Fiscalização Alfandegária), têm como alvo preferencial negros, latinos e asiáticos, enquanto cidadãos britânicos, canadenses e europeus raramente são considerados “ilegais” — ou sequer são investigados. 

No último fim de semana, em Los Angeles, essas operações se intensificaram. Entre os dias 6 e 9 de junho, mais de cem pessoas foram presas, a maioria em bairros como o Fashion District, Home Depot e áreas industriais da cidade. Apenas no Fashion District, 44 pessoas foram detidas, a maior parte de origem mexicana. As ruas próximas ao Edifício Federal Robert Young foram palco de repressão com gás lacrimogêneo, granadas de atordoamento e balas de borracha.

A resposta das autoridades incluiu o uso da Guarda Nacional e de fuzileiros navais, provocando críticas públicas — o governador Gavin Newsom classificou a operação como “excesso autoritário” do Presidente Trump. O aparato militarizado do Estado se revela de forma distinta conforme a cor e a origem dos corpos visados.

Esse padrão discriminatório repercute globalmente. Enquanto migrantes brancos oriundos do Sul global, do Oriente Médio ou da Europa recebem vistos, oportunidades e, muitas vezes, até acolhimento humanitário, pessoas não brancas de qualquer parte do globo que buscam alternativas de vida, sobretudo nos EUA ou na Europa, enfrentam detenções arbitrárias, processos de deportação sumários e xenofobia institucionalizada.

O sistema é claro em suas escolhas. Mas isso só pode ser nomeado como racismo quando alguém se dispõe a vê-lo como tal — e quando pessoas brancas recusam esse reconhecimento, mesmo que de forma inconsciente, reforçam exatamente aquilo que dizem condenar.

Nós brancos devemos questionar nosso conforto, e não fazermos pirraça quando nos avisam que nossa perspectiva é racista, e urge que paremos de escamotear nossa própria inclinação — consciente ou inconsciente — à lógica da supremacia branca. Não é suficiente se dizer aliado, é preciso responsabilização, rever nossos gestos, desapegar de narrativas em que somos bons por não sermos os agentes diretos da violência racista. Nomear o racismo é o mínimo. E o mínimo já não basta.

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  • Joanna Burigo

    Joanna Burigo é natural de Criciúma, SC e autora de "Patriarcado Gênero Feminismo" (Editora Zouk, 2022). Formada pela PU...

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