A realidade está sempre nos trazendo imagens muito tristes, que revelam a violação contra as mulheres em níveis complexos e cruéis. Mas é imprescindível reunirmos forças e evidências para confrontarmos aquilo que tenta nos subjugar. É importante nos lançarmos em campanhas e atuarmos cada vez mais amplamente para restabelecer nossos direitos fundamentais.

Levar ao conhecimento público a realidade no interior de nossas sociedades tornou-se uma estratégia de luta e uma forma de estabelecer alianças transformadoras. Por esta razão, gosto de compartilhar minhas experiências e sempre aposto na sensibilidade das pessoas para se deixarem tocar por histórias que, nem sempre, fazem parte do seu contexto cultural. Quanto mais compreendemos o código do outro, mais conseguimos decifrar seu mundo e nos solidarizarmos com ele.

E é assim que tem caminhado a luta contra a Mutilação Genital Feminina (MGF): cada vez mais ativistas questionam e criticam esta tradição e influenciam as autoridades a formularem leis que proíbem a prática. O que nem sempre é fácil, mas urgente e necessário!

Graças à crescente mobilização das organizações não-governamentais e de outras autarquias internacionais, a MGF foi proibida em diversos países na última década. Em torno de 30 países da Ásia, África e Oriente Médio seguem esta tradição, afetando mais de 200 milhões de mulheres até hoje.

Embora tenha diminuído significativamente na África do Oeste e ter sido legalmente decretada sua interdição em países onde a taxa era elevada, muitas famílias continuam submetendo suas filhas à mutilação. Em particular nas aldeias e cidades do interior dos países, o ritual segue fazendo vítimas. Ainda se contabiliza aproximadamente 3 milhões de mulheres por ano em risco, em diferentes países.

Há campanhas esclarecendo aos pais sobre as complicações físicas que a MGF traz para a saúde da mulher: infecções urinárias, irregularidade no ciclo menstrual, chegando até a interferir no trabalho de parto e levar mãe e criança a óbito.

Porém, a crença distorcida de que somente uma mulher submetida à MGF obterá um “bom casamento” é transmitida de geração a geração como um ritual que garante à menina sua passagem para a vida adulta. É um costume que permite que a mulher esteja bem preparada para servir seu marido.

Em muitos países, esta tradição é associada à religião muçulmana. Entretanto, não existe nenhuma determinação no livro sagrado (o Corão) que legitime isto. O fato é que alguns religiosos utilizam essa tradição para impor restrições sobre as mulheres. Elas não podem cozinhar nas celebrações, inclusive no Ramadão, por exemplo. Não podem orar adequadamente porque são impuras. E podem até ser expulsas das aldeias para evitar o mal coletivo.

O corpo e o sexo são considerados pecado e a MGF seria uma espécie de antídoto para livrar a mulher e a família da profanação. Na antiguidade, era usada como estratégia para preservar a linhagem da família. Na prática, a MGF não é apenas uma violência física. Ela carrega em si uma série de outras questões culturais, ideológicas e psicoemocionais. A mutilação rompe claramente o direito ao prazer, imputando à mulher o sofrimento psíquico também como consequência.

Acredita-se que, quando uma menina é submetida à MGF, ela perde o interesse pelo sexo, ficando mais fácil gerenciar o amadurecimento da sua sexualidade. Mas isto não corresponde à realidade, pois o índice de prostituição em nosso país, por exemplo, é elevado, mesmo que a maioria das mulheres tenha os genitais mutilados em algum nível.

Foto: reprodução

Existem basicamente 3 tipos de mutilação: clitoridectomia (o clitóris é parcial ou totalmente removido), a excisão (clitóris e pequenos lábios são parcial ou totalmente removidos); e a infibulação (clitóris, pequenos e grandes lábios são removidos, costurando-se a pele no entorno de maneira a manter apenas um orifício pequeno, para que a mulher possa urinar e escoar o sangue durante a menstruação). Há um quarto tipo relatado que refere-se à qualquer mutilação genital causada por razões não médicas, independente de ser uma punção/picada, perfuração, incisão/corte, escarificação ou cauterização.

É comum que a infibulação resulte na fibrose dos tecidos e que o marido utilize uma faca quente para romper o orifício antes da penetração.

Em qualquer nível de mutilação, há dor e risco para a integridade física e psicológica da menina. Tradicionalmente, a MGF era realizada em uma cerimônia liderada pela anciã da aldeia (muitas vezes também conhecida como “talhadora”), que costumava utilizar um único instrumento de corte para os procedimentos em todas as meninas do grupo.

Em alguns casos, se utilizava uma erva que provocava certo amortecimento nos genitais, diminuindo a dor. Porém, geralmente, tudo era realizado sem nenhuma anestesia e sem nenhum cuidado de esterilização. Muitas mulheres ficaram expostas à contaminação de doenças crônicas como o HIV, por exemplo. Outras tantas, ficaram mentalmente comprometidas pelo trauma imposto, em função do uso da força para segurar suas pernas abertas e os braços amarrados.

Com o passar do tempo e muita campanha educativa, as anciãs passaram a utilizar um instrumento por procedimento e/ou a usar algum método antisséptico. As famílias também começaram a procurar os serviços de saúde para que a MGF fosse realizada sob melhores condições sanitárias. Com a proibição da MGF, muitas famílias se reposicionaram e deixaram de seguir a tradição.

Algumas, entretanto, insistem na prática e, buscam se esquivar da lei levando as meninas aos serviços médicos para que seja feita, pelo menos, uma simulação do procedimento. Nos hospitais, os profissionais são orientados a não confrontar a decisão da família, mas a garantir que a menina não sofra com as consequências físicas do procedimento e, nestes casos, fazem um corte superficial no clitóris. Este tipo de procedimento tem sido bastante frequente, sob o argumento de que, desta forma, as meninas não sofrem com a discriminação da comunidade.

Foto: reprodução

Antes, era comum que as meninas usassem um vestido tradicional para anunciar que ela havia sido submetida à MGF. No final do período de cicatrização, a família oferecia uma festa e a vizinhança era convidada, levando presentes e conselhos sobre como ser uma mulher submissa no casamento. Famílias que não respeitavam o costume tinham suas filhas estigmatizadas pela comunidade.

No interior, infelizmente, a prática resiste. Com maior frequência encontramos as meninas usando os vestidos especiais. Muitas vezes elas não têm nem 10 anos. Na Guiné a idade em que se pratica a MGF varia entre 12 e 13 anos e há famílias que o fazem antes mesmo disso.

Na cidade grande vemos cada vez menos meninas com o traje habitual, mas isto não significa que os pais tenham se convencido do contrário. Muitos apenas evitam que as pessoas saibam que foi feita a MGF, com medo de serem denunciados perante a lei.

Talvez o mais impressionante de todos esses aspectos é a perpetuação da MGF com a anuência da própria mulher. Isto é, que os homens reforcem essa tradição como forma de dominação, podemos entender (sem jamais aceitar!). Mas ver as mães que tiveram seus genitais mutilados, que passaram a vida inteira com fortes dores abdominais no período menstrual, que foram violentadas pelo marido em sua primeira relação sexual, impondo a MGF às suas filhas, me faz acreditar que temos um grande trabalho de base a ser intensificado junto às mulheres.

* Versão em português elaborada por Andrea Silveira, autora da biografia da Maimouna Diallo sob o título “Guinée Fagni: a trajetória de uma mulher africana – a história de todas nós”, que pode ser baixado gratuitamente em PDF e/ou E-Pub.

 

 

 

 

 

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