Frozen II propõe diálogo sobre identidade, etnicidade e respeito às diferenças 

Estamos vivendo um momento de impactos e dificuldades, em que as incertezas nos amedrontam e nos afligem. Mas muitas pessoas têm buscado nas artes a fuga da realidade que amedronta diante de uma possível experiência dramática de dor e sofrimento. Falo sobre a possibilidade de nos auto-isolarmos com músicas, livros e filmes. Outro ponto bastante discutido é que as mães trabalhadoras têm vivido extenuantes jornadas de trabalho. Isso acontece diante da impossibilidade de trabalhar e, sobretudo, de não ter onde deixar seus filhos devido ao fechamento das escolas. Jornadas acrescidas do acompanhamento das crianças em atividades escolares realizadas em casa e do trabalho doméstico ainda mais acentuado. Em virtude de estarmos em casa com nossas filhas e filhos, os desenhos e brincadeiras se tornam uma constante. E nesse espírito de leveza e arte é que proponho discutir um pouco sobre a produção dos estúdios Disney: Frozen II.

Mesmo que haja um debate sobre o imperialismo estadunidense e das posições tradicionais de princesas passivas à espera de um príncipe encantado nos principais filmes da Disney, a própria Disney já vem procurando debater a passividade das personagens. Exemplo disso é a cena do encontro de diferentes princesas da Disney no desenho Detona Ralph, em que todas ironizam o fato da maioria delas estarem à espera de um príncipe e usando roupas desconfortáveis. Sobre essa cena específica caberia uma outra crítica.

Frozen II, lançamento esperado por muitas meninas que cantarolaram a canção da primeira versão do filme, traz a trajetória de uma princesa guerreira, que vai atrás de um chamado em busca de suas origens. Mesmo que tente não ouvir o chamado, afirmando saber quem é, este é muito forte e acaba por levá-la ao encontro de sua identidade.

Elsa Arendelle em Frozen II

É uma princesa entre dois mundos, está no entre-lugar, pois não se sente contemplada em um mundo onde não é aceita por sua magia e poderes. Ao seguir sua intuição, Elsa descobre esse outro mundo de seus ancestrais e visualiza o encontro com seu pai (príncipe branco) e sua mãe (indígena). O amor rejeitado dos pais pelos avós havia levado ambos a fugirem para o reino de Arendelle. Ainda outra questão é chocante para Elsa: o avô paterno (branco) é responsável pela morte do avô indígena, pai de sua mãe. De tal forma toma conhecimento de como aquele ludibria e engana a população indígena afirmando que faria o bem à comunidade.

Chamou-me a atenção o fato de que a voz que chama Elsa para o seu interior ser uma voz feminina. Essa voz lhe chamou para as suas memórias, as diferentes memórias que lhe constituíam e lhe provocaram. Assim, Elsa encontra a liberdade ao conhecer as origens indígenas de sua mãe. A voz que lhe chamava ao encontro do seu próprio eu era de sua mãe. Surpreendentemente, o encontro com seu povo originário lhe mostrou que a magia pode ser algo bom, libertador.

Assim Elsa se liberta: em uma cena marcante solta completamente o cabelo em sinal de liberdade, sem trança, sem amarras; agora está livre e pode ser ela mesma.

Ao conhecer a história de sua mãe Elsa percebe de onde vem sua magia, e de que ali não seria uma diferente, seu poder não seria mais um problema. A magia propõe a discussão sobre o sagrado feminino, nas relações entre a dimensão do feminino, a magia e os poderes advindos da natureza. Tais poderes, vistos até então como algo negativo por fazê-la ficar trancada durante muitos anos em seu quarto no castelo, agora serão reconhecidos como positivo.

Elsa percebe que não era apenas “a esquisita” mas que essa magia que ela considerava um obstáculo da vida em sociedade, era algo valorizado na sociedade tradicional de onde vinha sua mãe e de onde ela herdou esse dom. A protagonista resolve a questão que isolava a comunidade tradicional, passando a ser reconhecida como parte dela, e elucida o conflito que isolava os povos tradicionais da cidade real de Arendelle.

Mesmo que o sagrado feminino seja, em partes, negado pelas feministas coloniais ocidentais, as feministas latino-americanas e do Abya Yala demonstram que a proximidade com esse sagrado, a terra (pachamama) e a natureza, lhe proporcionam poderes, lhes unem e fortalecem.

Elsa está em busca de suas origens e podemos perceber um intenso debate acerca da colonialidade. Ao final a princesa percebe que seus parentes brancos, colonizadores, destroem e aniquilam seus ancestrais indígenas e sua magia — antes seu principal problema, agora uma aliada.

O debate feminista em Frozen II

Além destas questões, observei a presença da temática ambiental que aparece também neste filme da Disney . Conforme análise nessa crítica, “o convívio com a natureza está, de diferentes maneiras, inserido em Frozen 2. A mensagem é extremamente, importante no mundo atual.”

Além do discurso ambiental, o debate feminista em Frozen traz o diálogo com as feministas não brancas, indígenas, em conexão com vertentes dos feminismos latino-americanos. Movimentos esses em defesa da preservação da água e do meio ambiente como central para os povos tradicionais —  principais responsáveis pela manutenção e preservação da vida no planeta. Uma ideia da geopolítica de preservação de que todos e todas somos responsáveis pelo meio ambiente e precisamos lutar para a preservação da água, das cidades, do meio ambiente como um todo.

Outra questão que me chamou atenção foi que, ao final, Elsa escolhe viver fora do reino, e optou pela vida simples na comunidade tradicional. Anna, sua irmã mais nova, é quem assume como rainha de Arendelle. Cabe à Anna o final feliz dos contos de princesa que estamos acostumadas. Mas, igualmente surpreende, porque a rainha se casa com um rapaz da comunidade, um trabalhador sem família, que vive sozinho com uma rena.

Concluo que podemos ter um importante diálogo sobre identidade, etnicidade e respeito às diferenças a partir de Frozen II. Há potencial para debater com nossas crianças sobre as diferenças que podem ser desqualificadoras dependendo das lentes que as observam. Não mais um problema, a magia tornou-se grande aliada de Elsa, permitiu-lhe proteger sua família real (branca) e buscar suas próprias origens (não brancas). Há também um forte recado de que devemos proteger a natureza para a nossa própria sobrevivência.

 

 

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  • Claudia Regina Nichnig

    Claudia Regina Nichnig é historiadora, advogada e doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarin...

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