Domingo, dezoito de julho de dois mil e vinte e um. Este é o segundo aniversário de minha mãe que não pudemos festejar reunindo a família, compartilhar fortes abraços e falar alto ao mesmo tempo! Nem todos receberam a vacina e só minha mãe obteve a segunda dose da AstraZeneca. Estar em Turvo a seu lado é uma dádiva e estamos construindo uma relação a cada dia mais tranquila, enlaçada nos afetos. O que importa é que estamos juntas!

Ela locomove-se devagar, a passinhos curtos, apoiando-se na bengala. Sente dores nas pernas e, por vezes, os tremores do Parkinson a travam. Vez por outra, quando ela está menos trêmula, a convido para ver a horta e o jardim, a conduzo e cuido que fique segura nos seus passos vacilantes e lentos. Ela olha, comenta, e sempre diz “eu vou melhorar e voltar a cuidar de tudo!”. Digo que sim, que logo vai melhorar e vamos cuidar juntas. Eu sei que não vai acontecer, mas concordo e asseguro que sim.

Me desdobro para que do seu jardim brotem flores multicores na primavera, e estamos colhendo verduras que semeei e plantei no final do verão. Trabalho muito para manter os canteiros verdejantes e o jardim ornado e bem colorido como ela sempre fez. Fico cansada, mas seu olhar prazenteiro me alegra. Sigamos!

Na véspera de seu aniversário, ocorrido dia 15 deste mês, a levei para cortar os cabelos, fiz suas unhas, acarinhei seus pés calejados de camponesa que já viveu 83 anos! Nesse meio tempo por trinta anos acumulou a função de servidora de serviços gerais numa escola estadual com todos os afazeres do entorno, e da casa e dos cuidados com os filhos. Se estou aqui escrevendo, é porque ela jamais se deu o direito de descansar para que nós, seus filhos, tivéssemos direitos cidadãos.

Na concepção jurídica constitucional, o descanso é um direito fundamental dos trabalhadores e das trabalhadoras em defesa da dignidade. Infelizmente, na prática não é para todas as pessoas. Lembro-me bem de minha mãe esperando as férias do trabalho na escola para pôr as costuras em dia, fazer canteiros e cultivar a terra, cuidar dos animais – sempre tínhamos um porco no chiqueiro, galinhas e pelo menos uma vaca de leite – e desdobrar-se em várias para que tivéssemos oportunidades melhores. Nos meses de trabalho, acumulava triplas jornadas, fizesse chuva ou sol. Sei que esses desdobres no cotidiano fizeram, e ainda fazem, parte da vida das mulheres das classe populares.

De volta para junto de minha mãe, tive que aprender a lidar com seus limites, tanto pela saúde precária quanto pelos anos que acumulou e, se por um lado virou minha vida do avesso, por outro me deu o benefício do aprendizado de cuidar e do exercício da paciência. Desde as miudezas dos dias e noites às coisas mais prementes, aumentou meu sentido de responsabilidade, guiado pelo amor e é o que me segura.

Therezinha, mãe da cronista, em seu aniversário de 83 anos/Foto: arquivo pessoal

Neste convívio, percebo as fragilidades dela e mais a admiro por sua resistência nas longas oito décadas vividas. No dia de seu aniversário, no ritual do banho, chorei sem que ela visse, misturando minhas lágrimas com a água que descia em chuveiradas. Com ela de pé, com as mãos bem firmes na barra de apoio, deixei a água quente escorrer por seu corpo e me demorei de propósito. Em seguida, com uma esponja vegetal numa mão e o chuveirinho noutra, lavei suas costas, os braços, pernas e as dobras de seu corpo. Observei melhor suas manchas da idade, as gordurinhas que se acumularam principalmente no baixo ventre como marcas das seis maternidades, os fios de cabelos brancos – não sem que ela reclamasse da água que entra nos ouvidos ao lavar os cabelos e, embora eu cuide, sempre acontece. Por último chego aos pés já disformes, onde percebo mais as marcas do tempo que só as têm quem viveu. Valorizo suas cicatrizes e as afago como se fossem as minhas.

Terminado o banho, a conduzi ao quarto e então segui acariciando-a com uma toalha macia e felpuda. A vesti bem bonita, penteei, calcei uma pantufa e disse: “Mãe, vamos apagar uma velinha e comer bolo!” Faceira, disse: “É mesmo!! Hoje eu faço aniversário!!” Sim, mãezinha, e vamos ver a Laura!” Ao ouvir o nome da netinha, ela sorriu e se apressou. Alcancei-lhe a bengala e fomos para a cozinha. Foi lindo vê-la apagar a vela e, mesmo com as mãos trêmulas, espairou alegria! Meu irmão Madson, minha cunhada Nívia, Laurinha e eu cantamos parabéns. Seus olhos exalaram um brilho comovente, e foi emocionante!

Ao falar de minha mãe, refiro-me a todas as mulheres que, calejadas na labuta pela vida de si e dos seus, somaram experiências e nunca puderam descansar. E daquelas que nunca tiveram nem água para o banho, quiçá toalhas felpudas e uma festa de aniversário. Sei que parece piegas falar desse jeito, mas num país onde mais de 5,7 milhões não têm acesso a banheiro (IBGE, 2020), com certeza também não têm condições de alimentação adequada e nem cuidados na velhice.

No Brasil, o Estatuto do Idoso foi instituído (Lei 10.741/2003) para regular os direitos assegurados às pessoas acima de 60 anos. No artigo terceiro, está escrito que “É obrigação da família, comunidade, da sociedade e do poder público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”.

No entanto, para esta população que hoje soma quase 30 milhões de pessoas, o desamparo é imenso. Na parte mais baixa da pirâmide social estão os mais pobres e sofridos. Asilos e albergues seguem lotados e faltam políticas públicas sociais que acolham estes idosos de forma digna, bem como ações para tornar efetivas as políticas já existentes. No Brasil, o isolamento social imposto pela pandemia fez aumentar em 53% os casos de violação dos direitos humanos contra idosos: em 2020 foram notificadas 77 mil denúncias pelo Disque 100, e sabemos que são subnotificadas.

A antropóloga Mirian Goldenberg mostra o preconceito de parte da população que não valoriza seus idosos e que, com a Covid-19, agravou o abandono. “Esse tipo de discurso já existia antes da pandemia: os velhos são considerados inúteis, desnecessários e invisíveis. Mas agora está mais evidente. Políticos, empresários e até o presidente da República já vieram a público dar declarações “velhofóbicas”, diz Goldenberg (no início da pandemia, o presidente inominável defendeu apenas o isolamento da população idosa, considerada grupo de risco para a doença).

“Estamos assistindo horrorizados a discursos sórdidos, recheados de estigmas, preconceitos e violências contra os mais velhos”, completa.

Para que serve um presidente se ele isola e desabriga os idosos com sua política “gerontocida”? Segundo as ideias neoliberais, pessoas velhas não são mais produtivas e são onerosas para o Estado. Colocadas em segundo plano, são vistas como um incômodo, desassistidas muitas vezes pela própria família. Envelhecer deveria ser para todas as pessoas um tempo de colher sabedoria e somar afetos. Todavia, o que deveria ser visto como compreensão, cuidado,  paciência, desapego, valorização de sua história e respeito às suas memórias, torna-se um peso.

Eu quero ficar velha! Todas nós queremos ser idosas no futuro e isto constitui o privilégio de quem experimentou a vida. Quero a sorte de viver bastante e poder conviver com minha filha por muito tempo. O que importam as rugas e marcas do tempo se a vida continua, plena de sabores e saberes?? Se ainda sorrimos??

Quero que minha mãe viva seu tempo com o conforto, o carinho e cuidados que merece. Quero a idade de uma mulher que viveu para contar e com dignidade. Admirem as mulheres que resistiram aos seus árduos cotidianos e têm vida que ainda pulsa! Sobretudo, lembremo-nos que, se tivermos sorte, seremos velhas e queremos chegar lá com cidadania e dignidade.

“Quem menospreza o idoso por ser velho, está construindo o seu próprio abandono”. (Nino Carneiro)

Marlene de Fáveri, 18 de julho de 2021. Turvo, SC.

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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