Feminismo nosso de cada dia (1) – “Eu me descobri feminista ontem!”
Domingo, onze de abril de dois mil e vinte e um. Esta crônica marca um tempo em que, se ainda não é pós-claustro, ansiamos por vacina para todas as pessoas e pelo fim desta longa intempérie que nos consome de medos, saudades, angústias e perdas humanas. A pandemia se avoluma e continuamos reféns da rotina de ausências, solidões e distanciamento social. Em tempo de genocídio orquestrado por um governo nefasto e fascista, é preciso reagir e continuar vivendo. Viver e continuar reagindo. Sobreviver a esta moléstia torpe e engajarmos para que voltem os tempos democráticos, inclusivos e de justiça social real, é urgente.
No último ano, entre março de 2020 e março de 2021, escrevi cinquenta e quatro textos com denúncias viscerais sobre o descaso e a desumanidade de quem nos governa e sobre as violências que as mulheres sofrem. Tudo isso foi entremeado por acontecimentos do meu cotidiano na pandemia, vivido entre Turvo e Florianópolis. Aquelas crônicas, ou pelo menos metade delas, estão agora no livro Crônicas da Incontingência da Clausura – cotidianos na pandemia. No domingo passado foi feito o lançamento por via digital desde a casa da minha mãe. Claro que me emocionei e por vezes engasguei nos verbos, mas já aprendi a me perdoar por não ter dito tudo o que gostaria ou ter dito com a voz embargada. Ali, perto da horta, ao lado do jardim, espalhei aos quatro ventos meus escritos que agora pertencem às leitoras e aos leitores. Sim, escrevo para que pessoas possam refletir sobre si e, quiçá, ressignificar as lutas e as buscas por um mundo sem violências.
Reunir estes textos foi um desafio, maior ainda numa crise econômica advinda da pandemia que afetou as editoras. Mas, como gosto de ousar, logo estará disponível o segundo volume que completa a série. Aguardem!
Escrever me liberta, e preciso das palavras neste ofício de expor ideias e criar textos. Não me permito parar. Inicio esta nova série de crônicas transversalizando-as pelos feminismos do cotidiano que me movem na experiência de ouvir sentidos e resistências de pessoas comuns que têm enfrentado o machismo estrutural que violenta mulheres e meninas. E alguns homens, também machucados pela masculinidade tóxica com que são educados.
Afinal, o que é o feminismo mesmo? Para quê, e para quem, serve? A feminista negra bell hooks – ela se assina com minúsculas – afirma que o feminismo é para todo mundo, com o que concordo. Sendo uma forma de luta contra opressões, desqualificações e preconceitos, é emancipatório e generoso. O feminismo tem sua história enraizada na árdua resistência das mulheres que, através de muita luta, conquistaram direitos como o de votar, o de estudar, o direito ao corpo e a fazer escolhas, à saúde reprodutiva, a salários justos e equitativos, a participar da esfera pública política, dentre outros. Isso significou e significa o usufruto do exercício da democracia e da liberdade. Se hoje enfrentamos uma guerra cultural contra o feminismo e, por consequência, contra os estudos de gênero, é porque grande parte da sociedade não reconhece os direitos das mulheres. Mas o feminismo incomoda a quem?
Incomoda ao modelo conservador de sociedade, não só aos homens, mas também a algumas conservadoras oportunistas que tentam tirar vantagem das estruturas patriarcais. Boa parte dessas pessoas apoia-se na moral e na defesa do modelo de família que entendem ser o único possível. Fascistas e neofascistas é o que são. Meu repúdio para todo o sempre!
Sim, o feminismo é libertador para todo mundo. Se serve para mim, serve para você, para os homens, para todas as mulheres que se insurgem, e para aquelas que ainda não tiveram oportunidade de verem-se como sujeitos de direito. Conheci Andrea Benghi dia desses, mulher no seu quase meio século, trabalhadora desde menina e mãe de dois filhos homens. Enquanto almoçávamos, o assunto versou sobre o feminismo. Aproveitei para falar do meu livro de crônicas e das histórias de mulheres que nele conto…
Seus olhos brilharam! “Eu me descobri feminista ontem!! Foi por acaso, conversando com a Tashi (filha)! Eu achava que o feminismo era quase uma formação, um curso, uma coisa meio profissional, era a ideia que eu tinha, né”, disse ela, surpresa e encantada. Instigada por essa fala, perguntei como foi essa descoberta. “Ah, eu trabalhava numa empresa, e um colega que fazia o mesmo trabalho que eu, recebia 2.500 reais, e eu recebia 1.500. Eu não aceitava aquilo!! Por que ganho menos, se ele e eu temos a mesma função e mesmo tempo de empresa??”.
Ela contou que, durante meses, reivindicou a equidade do salário, mas o patrão desconversava. “Um dia enfrentei e disse: então me prove por que eu não posso receber o mesmo salário que ele? Me prove! Se a gente faz as mesmas tarefas, o que tem de diferença? Tem que ser equilibrado!”. Diante da justa reclamação da funcionária, o empresário acabou atendendo ao pedido. “Passei a receber o mesmo salário que meu colega!!! Foi uma batalha, mas eu consegui! E ao contar esse fato para a Tashi, descobri que isto é ser feminista!!!! Eu lutei por meus direitos!!! Me sinto forte agora, eu sou feminista!!!”. Não é para admirar e valorizar?
A fala de Andrea nos lembra a luta ao longo da história por equidade salarial. Os primeiros debates acerca das desigualdades entre homens e mulheres tiveram início faz menos de três séculos, oportunizados pelo processo de industrialização capitalista. Na época, Adam Smith, autor de A riqueza das nações, argumentava que a obrigação primeira das mulheres era a de ser boa mãe e esposa e de educar os filhos para serem trabalhadores produtivos que contribuíssem para a criação de riquezas. Isso dividia o mundo estre espaços público e privado, excluindo as mulheres dos empregos e, por conseguinte, forçando-as à dependência econômica de seus pais ou maridos. Nem se questionava o porquê de os salários das mulheres serem mais baixos, já que o emprego feminino era considerado complementar e circunstancial. Passaram-se séculos e, com os mesmos argumentos, até hoje mulheres recebem menos que os homens por igual trabalho.
No mercado de trabalho brasileiro, os homens, nas mesmas funções e com a mesma produtividade, chegam a ganhar até 25% a mais do que as mulheres, o que constitui uma discriminação inconstitucional, imoral e vergonhosa. Este debate está no Senado Federal que aprovou, dia 30 de março último, um Projeto de Lei para combater a desigualdade salarial entre homens e mulheres. Só falta o presidente assinar… Mas, o que esperar de um misógino machista???
Andrea conta que a sua igualdade salarial foi conquistada através da consciência gestada nas franjas do cotidiano, sendo que “é preciso matar um leão por dia e mesmo assim não nos ouvem. Esse teve que ouvir!!”. Sim, Andrea, no feminismo nosso de cada dia há que ter força, coragem, resiliência e combater o patriarcado com as armas da consciência de classe.
Dei a ela um exemplar do livro de crônicas. Comovida, disse: “Esta é a primeira vez que recebo um livro direto da autora, e ainda mais autografado!”. Então o folheou, depois leu pausadamente a dedicatória e sorriu. Nos emocionamos. O que dizer mais? Boa leitura, Andrea!
Desse fragmento da memória de Andrea, outras histórias merecem ouvidos atentos e são merecedoras de nosso respeito. A desigualdade entre homens e mulheres no mundo do trabalho está longe de terminar. Lutemos, pois!
Dedico esta crônica às mulheres que se insurgem e, a seu modo e sem que o saibam, estão afirmando o feminismo com outras palavras, ações e gestos.
“Toda vez que uma mulher se defende, sem nem perceber que isso é possível, sem qualquer pretensão, ela defende todas as mulheres.” – Maya Angelou.
Marlene de Fáveri, 11 de abril de 2021. Florianópolis.