O sistema pode até me transformar em empregada, Mas não pode me fazer raciocinar como criada. Yzalú

No Brasil, em quase 500 anos, data referente à invasão dos portugueses em terras indígenas, fomos governados por uma elite escravocrata. Foi o trabalho e produção da escravidão que permitiu o desenvolvimento do sistema capitalista no país e no Ocidente, quando o capital ainda não havia fabricado seus produtos, nossos corpos foram transformados em moedas/mercadoria. A abolição da escravatura estruturou uma hierarquia de raças de tal modo, que foi possível manter uma estrutura escravocrata e a reprodução de escravizados, sem a chamada escravidão como modelo econômico. Para tanto foi e é fundamental a manutenção dos privilégios da branquitude, independente da classe e gênero, todas e todos compreendemos os privilégios de ser branco e brancas neste país, basta olharmos por exemplo, para nossos partidos progressistas, organizações sociais, e na divisão racial/gênero no mercado de trabalho. Afinal quem mediante o pleno domínio de sua sanidade mental, desejaria ter o mesmo tratamento dispensado as populações negras?

Portanto, é preciso fugir de premissas raciais vigentes desde o fim do século XIX, quando o ocidente, ao hierarquizar as raças, também impele aos mais diferentes grupos raciais, os trabalhos e atividades que deverá ser empenhado por um e por outro. Em contornos, a nossa sociedade patriarcal tampouco vê com bons olhos a mulher nestes espaços de prestígio e visibilidade. Ao denunciarmos os privilégios de branquitude e a divisão racial e sexual do trabalho, lembremos que a população negra ocupa os piores índices nessa divisão. Desse modo, ao fazer o recorte de gênero e em comparação com as mulheres brancas evidencia-se o lugar de privilégio de homens e mulheres brancas neste país e na diáspora, dos quais participam de todo espaço que configure status, prestígio e poder, como venho mostrando em vários textos nesta coluna.

No Encontro Nacional para avaliação da Marcha de Mulheres Negras, ao fazer uma análise da conjuntura política, a vereadora Janete Pietá afirma: ter modelos democráticos não significa mudar o sistema cultural e hegemônico em que vivemos. Nas palavras de Angela Davis, não basta fazermos parte do sistema é preciso transformá-lo, seguindo o caminho apontado por essas mulheres, mesmo em governos democráticos, o que temos são as chamadas democracias representativas de baixo impacto.

Mas, é certo que foi possível fazermos fissuras em um quadro latino-americano na última década, pois até meados da década de 90, nosso lar sempre pareceu um quintal do Tio Sam, como diria Rafael Mendonça, provavelmente durante uma cochilada de Bush, vários países elegeram governos progressistas no mesmo período. Hugo Cháves, Evo Morales, Rafael Correa, Mujica, Cristina Kirchner, Bachelet e Lula. Coincidentemente à insurgência dos feminismos, movimentos negro e LGBT, atuando na construção de políticas públicas específicas, como a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e da Secretaria de Políticas Públicas e Igualdade Racial (SEPPIR), a criminalização do feminicídio, o programa Mulher viver sem violência, a Casa da Mulher brasileira, o estudo de gênero nos currículos escolares. Como aponta Carla Rodrigues, às mulheres “vieram se consolidando como força política fundamental no cenário de resistência”.

Igualmente a luta de movimentos negros fortemente comprometidos com a emancipação das populações negras e pobres do Brasil, impossível não mencionar o acesso à universidade pública para essas populações, ações afirmativas no serviço público, o direito conquistado que a população brasileira reconheça a história africana e cultura afro-brasileira como parte fundamental para a produção de ciência nas mais diversas áreas do conhecimento. Pensar que ainda hoje encontramos resistências por partes de professor@s, gestor@s, currículos, no que diz respeito a importância de nossa presença no país e na modernidade, sendo incapazes de pensar nossa história e cultura para além de suas retinas monocolores e coloniais.

Destes corpos insurgentes, a luta incansável dos LGBTs por sua visibilidade, o aprimoramento do conceito de família e que estes laços coincidam com a mesma importância jurídica que uma entidade familiar heteronormativa, constituída com direitos e proteção social, evidenciando que suas existências demarcam um afrontamento aos corpos regidos por binarismo/patriarcalismo.

No momento histórico em que vivemos, é necessário enfatizarmos nossas conquistas, as valorizarmos, pois não se resumem há dez anos de nossa história, mas da luta de diversos grupos que há muitas décadas ancoram, resistem, são protagonistas de suas vidas, para que seus corpos, de seus descendentes e de suas comunidades sejam humanizados e valorizados com equidade. Os golpes, o conservadorismo avassalador com ares de fascismo presentes no mundo empenham-se para que nossas lutas sejam invisibilizadas, nossos direitos retirados, na crença de que ainda podem parar a roda da história, na tentativa alucinante de sufocar-nos com seus falos brancos/heteronormativos/sexistas.

Logo, a luta continuará sendo o caminho para a concretização de nossos sonhos.

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  • Cristiane Mare

    Conselheira do Portal Catarinas, é mestra pela PUC/SP em História Social, atua como pesquisadora associada no Núcleo de...

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