Ainda outro dia ouvi uma professora bem jovem desabafando entre colegas, no meio de um intervalo mínimo de tempo entre uma aula e outra: “Eu só dei oito aulas esta semana e já estou exausta. Por favor, me digam: como é que vocês aguentam?”

Teve gente que sentiu o grau de aflição da moça e reagiu logo dizendo coisas como “ah, você tá assim porque é novinha, mas não se preocupe porque logo se acostuma” ou então “bom, talvez essa profissão não combine com você”. Sei ainda que também eu quis dizer algo e não consegui. Mas aquele nó na garganta me perseguiu.

Eu gostaria de dizer a ela que desde que comecei a dar aulas, há uns 30 anos, sinto que deveríamos ouvir alguém nos dizer mais abertamente o quanto há na nossa profissão de desencontro: isso, bem o contrário do que sonhamos. E não como algo eventual ou como um pequeno acidente de percurso sempre evitável. Não. Como o próprio cerne do que deveríamos estar preparados pra enfrentar.

Às vezes acho inclusive que só por um delírio estranho poderíamos esperar nos encontrar em sala de aula sentindo que há de fato algum desejo convergente ou uma abertura mútua nos ligando ali uns aos outros. Tanta gente, afinal, com seus próprios ritmos. E tantos acontecimentos externos ou internos atravessando a atenção de cada um!

Mas não, sequer se trata apenas disso.

O caso é que estamos num mundo e num momento em que parece esdrúxulo seguir buscando algum encontro mais profundo e perturbador, e é nisso que ainda reside toda a melhor aposta do que chamamos de “educação”. Porque tudo à nossa volta, afinal, nos pressiona para o exato contrário: estamos envoltos nas disputas mais mesquinhas, no império da competição eterna, no labirinto os esbarrões dados à nossa revelia, no deserto sufocante da falta de tempo, perdidos no meio do fantástico edifício hierárquico de uma sociedade que nos quer sempre ou subordinados ou chefes uns dos outros. Ou então ainda pior: mera escória, carta fora do baralho, resto não contabilizado, sujeira a ser varrida das ruas.

Aí chegamos nesse cenário ainda querendo aquela coisa louca que pode ser uma sala de aula, entendem? Um lugar onde supostamente teríamos a chance de estarmos juntos e dedicados a ter um contato mais sistemático com algo que consideramos central da nossa herança humana. E, portanto, num ambiente em que estaríamos chamados a nos transformar mais ativamente, a nos surpreender com o que não sabemos, a nos depararmos inclusive uns com os outros de um jeito diferente de quando somos simples chefes ou subordinados evitando mais uma demissão, tampouco meros estranhos se esbarrando de leve pelos corredores sempre muito estreitos – mas como colegas.

Não, não é à toa que nossa profissão tem sido tão atacada. Ainda acho que há nela essa semente do que poderíamos todos vir a ser, ainda há nela algo dessa prática revolucionária discreta e persistente que nos impulsiona aos encontros menos esperados e mais fundamentais: de cada um de nós com os outros, de cada um de nós consigo mesmo, do presente com o passado e também com o futuro, das tarefas mais humildes e diárias com os horizontes mais amplos e desejáveis. Convenhamos: não é pouca coisa. Afinal, estamos nos desencontrando frontalmente com todo um mundo armado contra isso. Ou deveríamos estar.

Pra moça nova que começou há pouco, talvez isso afinal não resolva a aflição que sente agora. Mas acho que é mais ou menos isso o que eu sopraria no ouvido dela, como se dissesse: “aprender a angustiar-se é uma arte tão necessária, querida. então seja bem vinda ao clube: não se acostume com nada de ruim, por favor, e nem tampouco desista se não for pra bater asas ainda mais largas, ainda mais alto.”

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  • Cristiane Brasileiro

    Doutora em Literatura pela PUC- Rio, professora adjunta na UERJ. Coordena projetos na área de formação continuada para p...

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