Domingo, doze de abril de dois mil e vinte. Hoje faz um mês que estou longe de casa. Tantas coisas aconteceram que perdi o tempo do tempo; me embaralho nas datas e parece que o ontem era semana passada e, amanhã, é ainda março. Tenho me virado com o que trouxe que era para menos de um semana; uso roupas de minha mãe, e está sendo um aprendizado obrigar-me ao minimalismo –  eu, que tenho uns trinta vestidos, a maior parte para dançar tango, customizados, ou costurado por mim (fiz curso de corte e costuma na juventude, como convinha a todas as moças que eram preparadas para o casamento).  Isso é o que menos importa.

Como de costume, minha família se reunia nos feriados de Páscoa, celebrava o encontro, se enroscava em afetos; neste ano, não houve encontro; trocamos abraços pela telinha. Dias atrás senti dores intensas, e não consegui expulsá-las sem buscar ajuda médica no hospital daqui – com soro na veia com não sei o quê naquele líquido saí do desconforto da adaga a atravessar minhas costelas, e o peito.

Tamires, a médica que me atendeu, havia lido minha última crônica e comentou – coisas sensíveis acontecem, e molduram sentidos. Não fossem nossas máscaras e a distância necessária nestes dias, a teria abraçado muito!

Tenho estado muito apreensiva. Na noite de sexta-feira da paixão, dia dez –  sorte nossa que a paixão tem várias formas; paixão por viver é uma delas – no silêncio que adentrava com o negrume no céu, me vi desprevenida sobre como entender estes tempos ásperos que estamos imersos e, sabemos, não tem volta; nada mais será como dantes nas relações deste planeta de terráqueos depois desta pandemia. Não bastassem os medos, as saudades de tudo, a insegurança com minha saúde e de minha mãe, a falta do abraço de minha filha, o fato de não poder voltar para Florianópolis, não bastasse tudo isso, minhas vísceras sobressaltaram com uma notícia devastadora: um amigo, desses que a gente guarda no lado esquerdo do peito, esvaindo-se numa UTI, um número na cabeceira. Os órgãos da engrenagem que avivam as carnes já não atendem; invasões bárbaras o exaurem e artérias derretem.

Vem-me à retina o leito branco, o corpo inerte, o respirador que zune, refém de tubos de ar para pulsar; e ainda pulsa, consumindo-se nas últimas forças para manter-se neste mundo. Não, não é o vírus medonho; são as entrelinhas de viver neste mundo.

Nessa noite da paixão – como creem parte dos cristãos – uma onda de perplexidade e dor feroz entrou de assalto nas minhas veias como se fosse um cálice virando, desbotando, ruindo, indo. Neste silêncio, num lampejo entre a razão e a sensibilidade, escrevi assim:

E, este silêncio da noite que adentra,
Essa solidão de abraços,
Essa imagem que me vem à retina,
Essa saudade que corta,
Essa despedida vazia,
Essa espera do fim que nos
faz cúmplices da dor?
E o depois? Serão só lembranças;
Ficaremos com o sorriso, e a
sorte de ter tido esse amigo
guardado no peito que bate.

 “Não há esperança que o corpo reaja”, disse o amigo do amigo, dia seguinte, expressando seu lamento na tarefa desgastante de relatar para centenas de amigos e amigas (nessa altura já conectadas por uma rede de grupo no whatsapp em vigília) que ouviram, incrédulos e atônitos, o último boletim médico. Fez-se uma rede pessoas ligadas por feixes de sentimentos, vibrações, correntes de amor e sentidos; ficamos sem palavras, tocados pelos afetos.

Cada um e cada uma de nós teme, a seu modo, a notícia fatal. Desde então, ensimesmados e enrodilhados nas lembranças, temos vivido em sobressaltos a cada toque de entrada de mensagem no celular – o início das tardes tem sido um suplício à espera do último relato, na voz visivelmente embargada do amigo Emerson. Afastados pelas distâncias, isolados em nossos cantos, alguns do outro lado do Atlântico, agrupamo-nos na solidão, perdidos cada qual em cavilações, movidos às memórias do afeto; sabemo-nos unidos no mesmo compasso da dor e da perda.

Nesses dias e meses temos vivido ao dissabor das notícias de pandemia, ou de um vírus medonho ceifando vidas por todas as partes deste planeta que geme na angústia da dor, do medo e da morte. Proibidos por decretos, os eventos que juntam pessoas não mais acontecem; assim também estão interditas as despedidas do outro, da outra que se vai na contingência de “Quando a indesejada das gentes chegar”, no fraseio de Manuel Bandeira. Então, tão dolorida quando a perda é a não despedida com fraternos abraços, o não encontro dos amigos e amigas para a homenagem sincera, singela, serena, agradecida pela beleza de ter partilhado do amigo, e com o amigo, na vida.

Quando era menina, acompanhei procissões saindo da igreja e seguindo um caixão levado por familiares até o cemitério. Pessoas da comunidade seguiam enfileiradas, em ritmo lento, de olhos baixos, repetindo preces…  Os homens com seus chapéus nas mãos; as mulheres com um rosário – eram elas que puxavam as ladainhas; a elas cabia amortalhar o corpo, organizar as preces, ajeitar as flores, entoar os hinos, organizar o enterro. Encomendada a alma, baixava o corpo; seguiam-se cumprimentos respeitosos aos familiares, irmanados na dor. No mais, era silêncio. “É a vida”, diziam, como palavra de consolo; e então seguiam para suas casas, suas colheitas, seus animais da colônia, com a memória do amigo ou parente de convívio nas alegrias e nas adversidades.

Essa digressão diz muito de minha história, do porque me é difícil aceitar esta não despedida; fica um espaço no peito, um vazio, um indizível, um luto sem adeus – se morrer é a única certeza da vida, temos muito que aprender sobre a morte. Esse vilão invisível fez o feito de nos desabrigar de abraços fraternos; porém, não nos tira o direito à lembrança. Estamos em sintonia expressando sentimentos de paz e passagem tranquila; vamos renovando laços de ternura nas expressões que traduzem relações e agradecimentos.  São pessoas que sentem a dor desta perda – amigos, amigas, colegas de trabalho, alunos, alunas,  orientandos, orientandas, familiares, todas tocadas pelo mestre afetuoso.

Luiz Felipe Falcão foi professor de História da UDESC durante 26 anos/Foto: arquivo pessoal da autora

é um professor desses que a gente diz “Ao mestre, com carinho” sem pensar duas vezes. Professor de História do Departamento de Ciências Humanas e da Educação na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), há 26 anos, esteve nas funções mais diversas nos colegiados e comissões dentro da Universidade, bem como associações como a Associação Nacional de História (ANPUH), dentre outras de cunho nacional e internacional. O professor é graduado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (1988), mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992) e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (1998), lecionou na Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI); e, por concurso público, ingressou na UDESC em 1994.

Suas pesquisas são referências nos estudos culturais, com ênfase em Teoria da História e Historiografia, principalmente sobre temas no âmbito da História do Tempo Presente: história oral, memória, cultura, identidade, cidade, esquerdas e resistência à ditadura. Suas publicações, em forma de livros, artigos, ensaios, monografias e outros estão disponíveis para a comunidade em geral. Sempre atualizado com os acontecimentos da História contemporânea, participou de eventos e atos pela democracia e por direitos humanos, e nas lutas por liberdade e democracia. Formou três gerações de historiadores e historiadoras, os quais, na sua maioria, alçou a profissão com a mesma paixão do mestre.

Numa entrevista perguntado sobre os desafios ao decidir ser professor de História, assim resumiu: “Tentar fazer com que os alunos tivessem uma curiosidade acerca do mundo, e dos mundos que precederam. Como entrar em contato com coisas que me são estranhas, estranhar essas coisas e ao mesmo tempo não repudiá-las. Encontro hoje ex-alunos que tomaram um rumo completamente distinto, um que mora nos EUA e trabalha para IBM, e ainda hoje lembra de aula de pré-história. De como introduzir o pensamento crítico.” Sábio, o mestre.

Suas digressões em aulas são desafiadoramente saborosas; ele as ministra magistralmente; pesquisa e escreve com paixão; rege-se por princípios republicanos e democráticos; apaixonado por uma boa conversa, boas leituras, bons filmes, boas cervejas com amigos.  Nestes dias de reclusão por conta do afastamento social, que nos decepam os abraços, vamos nos despedindo, assim, irmanados em um grupo de pertencimento. Sabemo-nos marcados pelos significados da amizade e das parcerias com o mestre – amigo, risonho, afetuoso generoso, crítico, solidário, democrata, tímido, cauteloso, alegre, teimoso como são os escorpianos; de olhos trêmulos… Pois é, amiga Urda Klueger, não deu tempo para aquela visita do amigo e juntos colherem goiabas.

Neste domingo, aqui no meu canto da clausura, sou acordada de sobressalto…  Era o amigo Hilário que, de lá das Geraes, me escreve da “dor de ver uma pessoas tão Grande partindo e não poder estar próximo.” É, amigo, estamos todos assim, órfãos de nossas companhias para acompanhar o amigo Felipe que não mais veremos… não ao vivo e a cores, mas estará presente nas nossas memórias coletivas, e individuais, como um legado de esperança de que neste mundo ainda caibam todos os mundos; sem violências, sem tiranias, sem pandemias como esta que nos distancia.

Fiquemos assim, revendo detalhes de filmes do, e com o, amigo recortados dos cones de nossas memórias, cada qual com seus preferidos, em vigília silenciosa; aproximando-nos mais. O silêncio, nessas horas, diz mais que palavras. Vigiemos, em silêncio.  Sim, “Foi bonita a festa, pá, fiquei contente,  e inda guardo, renitente, um velho cravo para mim.”

Paz. Silêncio. Respeito.

Marlene de Fáveri, Turvo/SC. 12 de abril de 2020.

 

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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