Crônica da incontingência da clausura (49) – ou as mulheres e o trabalho com idosos
Domingo, quatorze de fevereiro de dois mil e vinte e um. Chegar em Turvo e presenciar minha mãe à porta da cozinha esperando-me com um sorriso amoroso de mãe com saudades, não tem preço! Contive a vontade de abraçá-la e aconchegar-me no seu abraço quentinho como sempre fiz. “Ah, como a senhora está linda!” eu digo, porque é verdade, e ela estende o braço que não está com a muleta… “mas não pode ainda, mãezinha, preciso tomar banho e trocar de roupas, e depois quero um abraço bem comprido!”. Ele entende, mas não muito…
Vou para o chuveiro matutando: como deve ser difícil para uma senhora octogenária entender o porquê de abraços terem que ser adiados para depois de banho. Ouço meu irmão oferecendo uma cadeira para que ela fique confortável e aguarde um cadinho, e eles conversam.
Logo a encontro ali na cadeira apoiando as mãos na borda da bengala. Seus olhos amarelo-esverdeados brilham e ela estende os braços… a enlaço com vontade, mexo nos seus cabelos e digo que ela é meu chaveirinho predileto e ela responde que está muito pesada para ser chaveirinho, e nós rimos às gargalhadas!
Ela vira-se devagar para um lado da casa: “Olha como a horta está linda, Marlene!”. Eu olho, observo as plantas e pergunto se choveu nos últimos dias e se ela tem colhido vagens. Ela conta que trabalhou nos canteiros e fez isso e aquilo na horta, que ainda ontem colheu vagens e ovos… Eu a elogio, valorizo seu trabalho, digo que ela fez bastantes coisas na casa e está tudo lindo. Mas, será que ela sabe que não fez nada do que diz, porque sei que ela não pode andar? Ou será que acredita mesmo que fez, num mundo particular que embaraça sua memória? Será que lembra que fui eu quem transformou a horta numa belezura, semeei e plantei mudas das hortaliças de que ela gosta que cuido a cada vez que venho ficar um tempo com ela? Ou será que sabe que está com a memória recente atrapalhada e constrói um enredo imaginário para certificar-se de que não está esquecida? Não importa, desde que ela se sinta feliz.
Então vou para a horta e a primeira inspeção é no pé de maracujá. “Mãe, o pé de maracujá está cheio de flores!” Ufa! É que no mês de março, quando a pandemia me prendeu aqui, revirei a horta e, sem atentar o que seria aquela raiz retorcida, a cortei com a enxada. Dias depois, baraços e folhas frondosas murcharam… Minha mãe não se conformava. “Deve ter sido uma peste, ou um bicho hospedeiro” eu dizia. Naqueles dias, quieta e sentindo culpa, comprei um maracujá bem maduro e semeei, mas nada de germinarem. Sorte que achei ali perto um pequeno arbusto que parecia ser maracujá. E era! Cuidei dele com toda a dedicação, coloquei estrume e, à medida que foi crescendo, fiz suportes e os galhos subiram e se espalharam. Está lindo e cheio de flores! Ufa de novo! Teremos maracujás e minha mãe está feliz! Desde então, qualquer raiz que encontro na horta me certifico antes de cortar…
Fui apanhar o celular para fotografar as flores do maracujá e mostrar para a mãe, e foi quando Guevera e Tchê saem não sei de onde e se enroscam nas minhas pernas de um modo que quase caio. Que danados! Ato contínuo, um galo se esgoelava num cocoricó potente, exibindo-se para as fêmeas penosas numa competição de sons com sabiás e grilos. Meu irmão Madson, um desses raros homens que assumem os cuidados com a mãe idosa, me olha com um sorriso de amor e saudade… mas a gente não pode se abraçar, e isso dói fundo. Mantemos a distância recomendada. Ele sabe que, no seu trabalho de mecânico eletricista, por mais que use máscara e abuse do álcool70, nada garante que não esteja contaminado não está seguro e a mãe tem que ser protegida dessa moléstia infame. Ah, como eram bons nossos enroscos nos encontros e afagos…
Então ele me conta que “aqui em Turvo parece que todo mundo se vacinou e tem quem deboche de mim porque estou sempre de máscara”. Não é exagero dele: estive em algumas lojas onde nem vendedores nem clientes se protegiam, e observei grupos em conversas animadas como se não houvesse amanhã… Notícias dizem que este comportamento se repete em outros lugares, sejam eles urbanos ou rurais.
Que estrago fez, e faz, o cruel mandatário que trata o país como se fosse sua capitania, e as pessoas como se fossem objetos de sua perfídia: os 240 mil óbitos no Brasil pela Covid-19 doem na alma da pátria que sangra em visgos de dor. Envergonhada, não passa de uma republiqueta sendo leiloada para o capital estrangeiro, surrupiada e negociada em troca de apoios políticos. Esses vermes. Triste, chafurdam na lama da infâmia.
Bom dizer – gosto de digressões – que este país já foi a quinta economia do mundo, implantou o melhor programa de saúde pública, o SUS, e o melhor sistema de inclusão e condições de acesso à educação. Tenho certeza de que naqueles anos respirávamos seguros de que a Pátria era, na verdade, uma Nação respeitada. Tapete vermelho merecido quando Lula visitava chefes de Estado no estrangeiro.
Como de costume, quando estou aqui na casa da mãe, além de todos os trabalhos domésticos e do entorno da casa, providencio seus remédios, comida para gatos e galinhas, idas ao banco, à farmácia, ao mercado e outras necessidades. Nessas saídas – e lembro que a cidade de Turvo é pequena onde rural e urbanos se misturam – percebi que as mulheres são as que mais se protegem, usam a máscara com mais frequência e não se aglomeram como fazem os homens. Faz sentido.
São as mulheres em geral que cuidam das crianças e dos velhos. O cuidado de si é também uma prática do cuidado para com os outros, e as mulheres em geral são as responsáveis por velar pela saúde da família. Dentro de meu círculo de amizades, são raras as mulheres que têm apoio dos homens da família nos cuidados com os idosos. Praticamente todas as famílias têm os mais velhos morando junto ou não, e o cuidado redobra-se com a pandemia, já que eles são o grupo mais vulnerável e com mais risco de desenvolver complicações. “Segurar meu pai em casa tem sido o mais difícil, já que ele costumava sair, encontrar os amigos, e fica angustiado, reclama, quer atenção, e meu trabalho não anda”, desabafou uma amiga.
Uma pesquisa demonstrou que metade das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém durante a pandemia, bem como acentuaram-se as desigualdades nos trabalhos de cuidadoras. Para elas, a jornada ficou mais longa e as sobrecarregou. O modelo de sociedade que cobra das mulheres o cuidado e o afeto as responsabiliza quando se trata de cuidar dos pais ou parentes idosos.
Esse modelo construído historicamente, é fruto do capitalismo e do neoliberalismo que se apoiam na exploração do trabalho feminino. Para muitas delas, soma-se o martírio entre violências domésticas e o medo do contágio, tensionando ainda mais o cotidiano. Elas adoecem dessa sobrecarga. E quem as cuida?
Em Turvo, nesta semana, vacinaram os idosos com mais de 90 anos. “Quando será minha vez??”, pergunta minha mãe. Logo, logo… estou mais ansiosa do que ela! E a minha vez, quando será? Também espero, mãezinha. Desde o início da pandemia passei por vários dilemas e sustos: ela não entendia porque não podia mais ir ao mercado, ir visitar sua irmã Inês, abraçar os filhos, receber pessoas e chegou a “fugir” para a praça. Tanto repeti que o isolamento é necessário que temos que ficar em casa, e ela acalmou. Mas não muito… a vacina para ela e para todos nós terá sabor de alforria.
Quase um ano de isolamento social! Uma eternidade e, ao mesmo tempo, um sopro. O tempo revirou os ponteiros e, entre aprendizados e sustos, não soltamos nossas mãos. Cuidamos, e queremos compartilhar estes cuidados com parceiros homens, porque queremos equidade, e nossos velhinhos merecem!
Lembro que hoje faz um ano e era domingo de carnaval. Reunimos amigas e fomos às ruas de Floripa – Angelita, Paula, Arielle, Lizi e Alejandra e eu. Uma trupe animada! Este ano somos reféns de um vírus grudento, aff. Virão outros, e estaremos vivas!
Saudades tenho de minha filha. De algum lugar perto das ruínas do Coliseu, me conta e fotografa: “Mãe, olha o que estou vendo!”, ela sabe que assim provoca a historiadora curiosa. Vai voltar logo!
“O tempo não para! A saudade é que faz as coisas pararem no tempo…”, provoca o poeta Mario Quintana.
Marlene de Fáveri, 14 de fevereiro de 2021. Turvo, SC.