Domingo, trinta e um de janeiro de dois mil e vinte e um. E lá se foi o mês de janeiro… Lembro de um tempo em que – parece tão distante! –  em janeiro eu entrava no mar, andava na areia, sambava e tangava por aí, festejava com amigas e amigos. Neste ano, nem vi o mar…  Voltei de Turvo para minha casa em um bairro de Florianópolis e aqui me detenho por uns dias. Preciso deste espaço para revisitar guardados e alimentar ideias – um teto todo meu, parafraseando Virgínia Woolf.

Em Florianópolis vivemos um caos urbano e sanitário. A chuva do início desta semana inundou bairros, tombou moradias, pessoas e sonhos. O rompimento de uma estação de tratamento de águas na Lagoa da Conceição mostra que, se a natureza é presidente, obras da engenharia a subestimam.  A água, o fogo, o vento e a terra chegaram antes de nós, humanos destruidores deste ambiente que nos alimenta e nos provê do oxigênio.

Não bastasse o estrago com as chuvas e o vírus se multiplicando, o prefeito da cidade decide cometer crimes contra trabalhadoras/es da Companhia de Melhoramentos da Capital, a Comcap. Um pacote de medidas prevê o desmantelamento da empresa, demissões, cortes de direitos e benefícios com um projeto de entrega da coleta de lixo aos tubarões do capital, privatizando a Companhia. Infernal. Necropolítica na veia. O que querem é matar os pobres trabalhadoras/es para enriquecer uns gananciosos usurpadores, os mesmos produtores de lixo… É desumano. É muita cara-de-pau de um prefeito romper com o acordo coletivo da categoria e maltratá-la à exaustão.

A autora em seu processo de escrita/Foto: Paula Guimarães

E o que dizer dos vereadores e vereadoras que votaram a favor do desmonte de uma empresa pública que é referência no país? Não sentem vergonha de usurpar direitos da população mais vulnerável?  Quem os elegeu concorda com isso? A grande imprensa faz eco ao discurso do prefeito municipal de que, com a privatização, o município economizará cerca de 20 milhões por ano… E o custo social?

Quem mesmo tem privilégios? É o neoliberalismo trucidando uma classe de trabalhadoras/es que sofreu, e sofre, estigmas, socialmente inferiorizada. É a crônica do neoliberalismo triturando direitos da categoria, desvalorizando-a, desrespeitando-a, invisibilizando-a.  Pense: se o seu lixo não for recolhido, como ficará a cidade?

Em Florianópolis, como se lê no site da PMF, a Comcap é responsável pela coleta domiciliar de resíduos, remoção e coleta de resíduos volumosos e de lixo pesado, coleta seletiva de materiais recicláveis, remoção de entulho e pela varrição com caixas estacionárias e caminhões-caçamba, além da capina mecanizada, capina manual, roçagem, limpeza de canais e valas a céu aberto, varrição da ruas, administração de estacionamentos e sanitários públicos,  limpeza em eventos como festas populares e religiosas, e outros promovidos pela Prefeitura Municipal, bem como pelos programas de mutirões. No ano de 2019, o total de resíduos recolhidos pelos serviços de limpeza urbana em Florianópolis foi de 212 mil toneladas, o que corresponde à média de 18 mil toneladas por mês ou 700 toneladas por dia. Imagine o estado caótico sem esses serviços!

Neste domingo, dia de publicação desta crônica, acontece uma grande manifestação em defesa da Comcap/Foto: divulgação

A Comcap é imprescindível na organização dos espaços e na promoção do bem-estar dos citadinos e dos turistas. Sabemos que o que é considerado lixo varia de uma cultura para outra e revela um indicador de valores de como cada sociedade lida com sua higiene, consumo e desperdício, ensina o historiador Peter Burke, em A história social do lixo.

A historiadora Gloria Alejandra Guarnizo Luna, na tese de doutoramento intitulada O (não) lixo na era do consumo: museu, cidade, arte, concluída em 2018, mostra que “o lixo talvez seja, se não o maior, um dos maiores problemas que afetam todas as formas de vida do planeta. Ele torna-se problema quando perdemos o controle daquilo que é retirado do campo de visão, mas que continua presente em outros lugares, como lixões, aterros, terrenos, rios, mares e oceanos. É um problema que afeta homens e mulheres, dependendo  do lugar que ocupam numa   perspectiva econômica e social; nas periferias há maior influência, embora todo o sistema seja atingido”. (p. 71).

A cultura do consumismo, somada ao desperdício exorbitante de alimentos, à exploração de recursos naturais e o descarte inadequado de coisas usadas é um dos problemas mais complexos do nosso tempo. Políticas ambientais e sanitaristas devem ser pensadas em conformidade com políticas públicas que assegurem direitos da classe trabalhadora em todos as funções, com respeito, dignidade, cidadania e, neste caso, para uma classe que é submetida diariamente a uma carga de trabalho exaustiva e insalubre.

O Sindicato dos Trabalhadores do Serviço Público Municipal de Florianópolis – Sintrasem, resiste à privatização da Comcap, e é justo que esteja na defesas dos empregos e a manutenção deste serviço público. Estive na rua na terça-feira, dia da votação do ‘pacote de maldades’. Mulheres uniformizadas, as chamadas ‘margaridas’, empunhando braços e com a voz embagada estavam ali, lutando por dignidade, trabalho, alimento, segurança,  moradia, saúde e vida. Elas estão lutando por sobrevivência, a sua e a de seus filhos. É comum vê-las varrendo as ruas e não raro sofrem preconceitos de passantes.

“As pessoas nem nos olham, tropeçam na gente e nem se dão ao trabalho de pedir desculpas. A gente se acostuma…”, ouvi de Maria, uma ‘margarida’ com a qual conversei na rua.

A invisibilidade do trabalho das mulheres é cultural e, no caso desta mulher, soma-se à desqualificação do trabalho considerado menor e até desprezível: a limpeza e o trabalho com a recolha de lixo. Em Florianópolis, em maio de 2020, elas eram 20% do total de garis na cidade, ou seja, 157 ‘margaridas’.

Foto: divulgação Comcap

São mulheres que sonham, cuidam dos seus e dos espaços dos outros, têm histórias, sentimentos, família, e batalham na dureza de um trabalho árduo e insalubre. Em 2015, a Comcap promoveu uma ação intitulada “Um clique, muitas histórias”, fotografando estas mulheres garis: imagens selecionadas pela fotógrafa e artista plástica Maristela Giassi foram expostas para mostrar suas vidas e sentimentos, com o intuito de captar a alma dessas mulheres. Seus depoimentos foram relatados ao lado das fotografias. “As histórias são diferentes, variadas, mas todas remetem a um ganho em autoestima com esse trabalho”, observou Maristela Giassi. Há beleza sob o macacão alaranjado, seus uniformes de trabalho. Mesmo que invisíveis, elas têm vida que pulsa. Merecem nosso respeito.

Hoje, elas estão mais vulneráveis por conta da Covid-19 numa cidade onde o contágio está sem controle. Nem vou falar do escândalo da compra de R$ 15 milhões de reais em leite condensado pelo executivo federal, evidenciando fortes suspeitas de superfaturamento. O argumento é: enquanto uns nacionalicidas se empapuçam de caviar, carnes nobres, bebidas, leites e gomas de mascar superfaturadas, o fazem às custas de nossos impostos… e a população que lida e sua e sofre vive numa realidade dura e crua. Desprezada e aviltada.

Os trabalhadores e as trabalhadoras da limpeza urbana continuam no seu labor diário, cuidando do espaço onde eu passo, onde tu passas, onde nós passamos, e que muitas vezes não sobra um vintém para uma lata de leite condensado… Não, não podem tirar seus direitos de cidadãs e trabalhadoras. Como todas as mulheres, merecem dignidade e um lugar na sociedade sem violências.

Manifesto todo apoio e solidariedade à luta para barrar a privatização da Comcap e para e manter os sonhos das pessoas que cuidam de onde passamos.

A COMCAP É PÚBLICA E É NOSSA!

Marlene de Fáveri, 30 de janeiro de 2021. Florianópolis.

 

 

 

Marlene de Fáveri

Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC. Membro do Laboratório de Relações de Gênero e Família (LABGEF), do Instituto de Estudos de Gênero (IEG), do GTGênero (ANPUH Brasil) e da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil (AJEB). Autora de artigos, capítulos de livros e artigos de História, Gênero, Feminismo, Divórcio, Mercado do Sexo, Mídias. Foi processada em 2016 por ex aluna no teor da ‘escola da mordaça”, vencedora no processo. É feminista, poetisa, escritora e militante pelos Direitos Humanos e cidadania, com foco nos direitos das mulheres. Participa do Grupo de Poetas e Escritores Mario Quintana, fundado em Itajaí em 1988, com publicações em coletâneas e diversas premiações, como para o Off Flip 3023. É colunista no Portal Catarinas - jornalismo com perspectiva de Gênero. Em 2021, publicou dois (02) volumes de Crônicas da incontingência da clausura – cotidianos da pandemia (Letras Contemporâneas) uma série de 54 crônicas escritas no calor dos acontecimentos da pandemia, com foco no feminismo e nas fissuras de viver num tempo pandêmico. Em 2022, escreveu e organizou o livro O Ultrarrealismo na cena literária de Itajaí (Traços & Capturas), e o livro de poesias feministas: Se pulsa, arde e resiste (Infinitta Leitura).

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