Crônica da incontingência da clausura (44) – ou o susto, o medo e a esperança
Domingo, dez de janeiro de dois mil e vinte e um. Instalada numa poltrona e isolada por um blecaute branco, ouço o burburinho das vozes e passos de pessoas entrando em outros cubículos iguais a este em que estou, separados pela cortina. Algumas pessoas tossem, como eu. Enfermeiras, atendentes, médicos e funcionários que higienizam os espaços, circulam. Vestem um avental branco cobrindo todo o corpo, usam uma máscara reforçada – noto que algumas pessoas usam duas máscaras – uma viseira de plástico e luvas. Parecem astronautas. Na única parede de alvenaria há fios, oxigênio, medidores, tomadas, mais fios.
Enquanto aguardo, fecho os olhos e refaço as últimas horas. No dia anterior, minhas costas pareciam um pão sendo prensado numa sanduicheira, uma dor nas têmporas que subia para o crânio, e aquela tosse de um cãozinho afogando-se. Cheirei perfume, comida, minha pele e, como estava normal, pensei numa gripe provocada pelas alterações bruscas entre frio e calor nos primeiros dias do ano.
Bebi uma xícara de chá com um relaxante muscular e recolhi-me para dormir. Rolei e não consegui ensonar. Deitada, aumentava o aperto nas costas. Eram cinco horas da manhã e eu me sentia pior. O olfato estava normal e ao que me parecia eu não estava quente ou febril. A cabeça doía mais que antes. Abri a internet e pesquisei atentamente sobre os sintomas da Covid-19. E se for o vírus? Como ficar com esta dúvida? De um salto, tomei um banho, usei uma roupa leve, catei uma mochila e coloquei documentos, um chinelo, um pente, escova de dentes, umas roupas, o celular e um cartão de crédito. Ah, caderno e caneta pois, sem eles, me sinto nua. Chamei um Uber que demorou uns vinte intermináveis minutos. Não comuniquei a ninguém – essa auto suficiência que a gente adquire quando mora sozinha…
Cheguei no pronto-socorro da Unimed e, por sorte, havia pouco movimento naquela hora. Rapidamente fui conduzida a uma outra sala por um corredor longo que cruzava por muitas portas. Uma atendente colheu os sinais: pressão boa, saturação normal, sem febre. Muitas perguntas e um prontuário com meu nome, me senti entrando nas estatísticas. Depois, a atendente me conduziu para esta sala branca…
“Marlene?”, ouço, pouco depois. Entra uma médica. Me faz muitas perguntas e solicita uma tomografia dos pulmões e o teste da Covid-19. Começo a tossir – talvez mais de nervosa. Assim que a médica sai do meu cubículo, sinto uma solidão que não é de meu feitio. Não consigo segurar o choro e peço um lenço – como não lembrei de trazer? Passam dez longos minutos quando uma enfermeira abre a cortina, noto que tem nas mãos as hastes longas, e me explica como é a coleta para o teste da Covid-19. Não doeu e foi rápido, embora seja muito desconfortável aqueles pauzinhos no fundo do nariz. Ela saiu e fiquei só nas minhas cavilações. Aturdida.
Passam muitas coisas pelos fios nervosos do cérebro. Será que aviso alguém e incomodo a esta hora? Será que volto para casa? Será que fico aqui entubada? Ou não seria tão sério? Mas como, se me cuidei tanto? Penso na minha filha que não merece perder a mãe tão cedo. E nem minha mãe, já em idade avançada, merece perder uma filha. Minha mente revira e penso nas coisas que ainda quero escrever, nos projetos de livros, nas poesias, nos meus guardados, na minha casa…
Alguém vem me buscar para fazer a tomografia. Como um autômato, sigo seus passos, minhas pernas tremem e me esforço para segurar as lágrimas. Entro num tubo, deitada. “Quando ouvir o áudio, encha os pulmões, segure o ar”, diz-me, atenciosa, a atendente, por certo acostumada a pacientes esculhambados no corpo e na alma. Foi rápido. Volto para minha poltrona no cubículo branco. Os burburinhos aumentam, mais pessoas chegam, mais passos, mais tosses. Será que estas pessoas têm o mesmo medo que eu? Ou não tem medo? De que eu tenho medo? Fechei os olhos. Não há de ser nada.
E se eu ficar internada? Num lampejo de racionalidade, envio um áudio para minha irmã Maria sobre onde e como eu estou, e peço que não conte a ninguém, nem para minha filha. Ela, como é evidente, preocupa-se e pede notícias em breve – está em Turvo, mas se estivesse em Florianópolis por certo viria voando para junto de mim. Bem, não estou mais só, pensei.
Está tudo branco e frio aqui. Como não lembrei de trazer um agasalho? Enquanto aguardo o resultado da tomografia, meu cérebro se embaralha. E se eu morrer? Tenho um histórico de fumante e pressão alta, embora controlada, um joelho estragado que me dificultava um pouco passos mais ousados no tango, somado ao fator idade. Como estará minha imunidade? Tenho cuidado, mas, vá saber. A memória abre cones e, com os cílios colados, imagens saltitam.
Tive a sorte de viver mais de meio século, eu vivi! Fiz muitas coisas úteis, aprendi e ensinei coisas, abracei muito. Amei muito. Escrevi muito. Dancei muito tango. Viajei muito. Tenho amigas e amigos incondicionais, um namorado amante, uma família amorosa que se cuida. Errei também, ou porque não soube fazer, ou por desconhecimento, ou pelas dificuldades de sair das amarras do patriarcado, ou… Reticências encheriam páginas.
Me dou conta do privilégio de ser bem atendida, ter um plano de saúde e ser cuidada, quando a grande maioria não tem esse direito. Amofino-me de tristeza com este pensamento. Dia desses, preocupada com a incontingência do vírus, registrei instruções para minha filha sobre meus guardados, meus livros, meus arquivos com textos inacabados se eu me for. “Ah, mãe, não seja trágica, você não vai morrer logo! Nem pensa em me deixar! Se cuide muito, por favor”, disse minha filha. “Tashi, só estou sendo prática, vai que…”. Ela diz que me ama e não quer falar sobre isso. Amor tanto é pouco perto do que eu sinto.
Rememoro poemas, os que fiz outrora e os mais recentes. Eles dizem de minhas escolhas e buscas. Eu algum lugar escrevi que, quando eu me for, não chorem. Me lembrem com a fúria das mulheres que ousam, do tanto que estudei, dos homens que amei, da filha que pari, da mãe que acariciei, dos alunos e alunas que ouvi e com quem compartilhei conhecimentos, das amizades que cultivei, da família que tive/tenho, dos poemas e livros que escrevi, do jardim de minha mãe que cuidei, das hortaliças que plantei, dos verbos que conjuguei… Das cicatrizes que acumulei e de tudo o que experimentei.
Todavia, se acontecer de eu me ir, minha filha, a prioridade será a saúde de sua avó e a sua própria saúde. Cuide-se bem. Descanse mais. Faça escolhas que te alimentem os sonhos. Não te exijas tantas perfeições e se dê o direito à leveza. Ame mais, pratique sempre a generosidade e seja humilde e ética nas relações. E não descuide das lutas feministas e dos seus direitos como mulher e cidadã. Sobretudo, continue com o afeto e os laços familiares que tanto nos unem. Lembro de minha mãe que era de aço e quero acompanhá-la por todos os dias que lhe restam. Não, não me vou agora. Não posso.
Escrevo enquanto aguardo. Tenho vontade de gritar, mas me resigno quietinha no meu espaço branco e frio, deslizando a caneta nas linhas de um caderno em espiral. A médica abre a cortina, dou um salto pois temo o que me dirá. Ela me conduz à outra sala que é um consultório e dá o veredicto: “Seu pulmão não tem sinais de sintomas da Covid-19, embora tenha um cantinho que deve averiguar, mas é benigno, ao que parece”. Suspirei. Menos mal. Me receitou a medicação para abrir os pulmões, recomendou que me cuidasse e ficasse isolada por pelo menos sete dias, até sair o resultado do teste. Eu devia estar pálida e era visível meu cansaço, tanto que recomendou que eu me acalmasse e descansasse mais. Pegou na jugular… Agradeço e procuro a porta de saída. Na rua, respiro e me sento num banco para colocar os pensamentos em ordem. Escrevo para minha irmã. São nove horas. Chamo o Uber. No trajeto, continuo anotando o que sinto.
Nos meses da pandemia não tive descanso, ou em Turvo ou em Florianópolis, sempre arrumando coisas para fazer e escrevendo. Mas na casa da mãe exagerei nos trabalhos pesados. Um dia antes de voltar para minha casa estava eu podando árvores até escurecer. Dia seguinte, encarei quase cinco horas de trânsito estafante, calor e buzinas. Cheguei em Florianópolis e dei uma geral no apartamento porque encontrei asas de cupim, afff. Não há corpo que aguente. Há mais: o estresse causado pela pandemia grudou na pele e nas vísceras, já que um inimigo sem rosto nos espreita, fazendo disparar o mecanismo da ansiedade. Essa síndrome é geral: “Em paralelo ao coronavírus, vemos surgir uma pandemia de medo e estresse”, resume o psicólogo Felipe Ornell, gerando tensão que pode levar à depressão.
Somadas a tudo isso, as notícias são alarmantes: as violências de gênero aviltam, os medos todos e nossa fragilidade nessa experiência de viver uma pandemia nos consomem. Ajuntamentos de pessoas nas festas e praias assustam e sabemos o que vem depois. Temos um desgoverno que zomba de nossos afetos num país chafurdando em pocilgas, um ignóbil ser disputando travessia a nado no mar para provar macheza, misturando-se com manadas cegas e surdas. Estamos respirando a insanidade predadora deste ser sem noção de realidade. Como prover-nos de esperanças??? O ar está tóxico.
Ah, se a realidade entrasse no cérebro dos incautos com mentes manipuladas, e se esses seres compreendessem quem são os algozes que os querem matar de medo, de susto, de fome, de preconceitos, de assédios, de Covid-19 e de miséria social… Bastaria entenderem que os hospitais estão lotados, que passamos de 200 mil mortos, que negar a vacina é crime, que ir à festas e aglomerações é um atestado de burrice e um desprezo pela vida. Foi o que vimos, aparvalhados, nestes dias de comemorações: bandos de zumbis irresponsáveis debochando de quem cuida e se cuida. Leio num jornal que a segunda onda no sul do Brasil está matando mais que a primeira. Lastimável. Abominável. Apavorante é a incerteza sobre o dia de amanhã, depois de amanhã e do tempo que seguirá.
Já em casa, remoendo o acontecido, reorganizo as ideias. Este enredo não mereceria uma crônica se não houvesse um vírus medonho a nos acossar e castigar física e mentalmente. Peço o medicamento na farmácia, e me trazem em seguida. Escrevo, e me acalmo. Posso dizer que estou bem, nada de diferente me ocorre. Sinto o cheiro de minhas mãos e das coisas com seus odores característicos. Ah! Como é bom ter olfato! Sigo em casa, isolada, com a certeza de que não vou morrer logo. Quando eu morrer, saibam que fui uma mulher do meu tempo que viveu intensamente. Isso importa, sim. Eu vivi.
Antes de fechar este texto, a notícia é demais de boa: “Não detectado” para Covid-19! O medicamento e o descanso estão fazendo efeito. Claro que vou dobrar os cuidados de higiene e, se sair de casa, tudo o que eu tocar ficará bêbado… Ah, tem a vacina no horizonte… será mesmo que nesta desordem e falta de planejamento teremos este benefício??
Espero, com vontades muitas, que daqui a um ano eu possa contar como nos livramos desta maldita peste viral. E relatar como voltamos a nos enlaçar com prazer nos amores, plenos de saúde e esperança de um mundo que saiu dessa triste pandemia mais solidário. Dia desses escrevi assim:
Armas
Levo-as em versos
Sempre que vou por aí
Abrem mentes, denunciam.
Sigo escrevendo poemas e
Sangra tua dor em mim.
Verbos
Trago-os como armas
Na Bandeira lilás / na Estrela vermelha
Alargam sonhos, socializam.
Sigo conjugando iras a cada
Machucado em ti.
Que ninguém mais seja machucado por quaisquer violências. Vivamos intensamente, cuidando-nos e protegendo nossos próximos. A vida urge!
Marlene de Fáveri, 10 de janeiro de 2021. Florianópolis.