Domingo, três de janeiro de dois mil e vinte e um. E virou o ano!  Na casa de minha mãe, em Turvo, o cotidiano não mudou em nada com a virada do calendário. Todavia, acumulamos esperanças. Sim, a esperança vencerá o medo e vamos em frente! O verde continua verde, as flores coloridas, os comilões Guevara, Tchê e as penosas engordam com as sobras de nossa comida farta nessas festas, bem felizes. Estamos colhendo vagens, folhas, tubérculos, temperos, chás, uma dádiva! Eu, claro, dentre outras tarefas, capinei de novo todos os espaços onde ervas daninhas se acotovelam com esse calor. Já acostumei a driblar as danadas.

No ano que passou, pelo mês de março, acordamos sob ordens severas de distanciamento social. Em 273 dias desde a primeira vida ceifada pelo covid-19 no Brasil, convivemos com normas de isolamento, cuidados, medos, sustos, distâncias, silêncios, perdas, saudades, solidões. Aprendemos a resiliência, o imprescindível sentido da solidariedade e a certeza de que somos frágeis. Nos reinventamos. Mas a vida pulsa e podemos ser fortes nas práticas do cuidado. “A vida é um sopro” disse Oscar Niemeyer. Todavia, não queremos sair dela assim, acossados por uma moléstia infame: nos acostumamos ao uso de máscaras e do álcool em gel embebedando nosso cotidiano. Quem abraçamos durante a pandemia?  E quem não pudemos abraçar? Quando será possível a vacina? Como será 2021?

Terminamos o ano com quase 200 mil mortos neste país da desordem institucional e do negacionismo. Um desfortúnio trágico.  A pandemia arrastar-se-á por um bom tempo ainda, e pode piorar com as mutações do vírus. Desejar um bom ano novo e continuar na hipocrisia negacionista, irresponsável, racista, aporofóbica, fascista e machista de nada adianta. Esperamos responsabilidade dos governantes, embora a sordidez desse (des)governo tem cheiro de enxofre.

Viramos um ano inclemente nas nossas relações de proximidade com pessoas que costumávamos abraçar, reunir, viajar, festejar. Tenho a impressão que as relações viraram para o lado avesso. Somado a isto, somos bombardeados com excesso de informações, o desnorteio com o constante risco de contaminação e o aumento de mortos, o medo da doença e a sensação de perda das coisas tão triviais e necessárias como o costume de abraçar e beijar as pessoas de que gostamos. As notícias sempre mais alarmantes por termos a certeza de que o invisível pestilento anda pulando por aí de corpo em corpo. Como não recear um aperto de mão, um abraço?  Como lidar com moedas e notas que passam por tantas mãos? Exagero, dizem algumas pessoas, as mesmas que se juntam nas festas como se não houvesse um medonho saltitando através das gotículas da respiração. Quantos dias, semanas ou meses trágicos nos aguardam nesse poço de medo? Vacina, ah! uma vacina eficaz, democrática… quanto imbróglio por conta da vacina nesse desgoverno que zomba da morte.  O ano novo se anuncia velho…

Minha irmã Maria se isolou o tempo necessário e veio a Turvo ver a mãe depois de um ano de distância. Foi lindo nosso encontro! Como sempre acontece, memórias de infância nos fazem rir e alimentam nossas referências familiares. Ela lembrou o costume de as crianças saírem de madrugada, no dia primeiro de janeiro, bater nas portas das casas vizinhas e desejar “bom princípio do ano novo”, pelo que recebiam um doce, uma bala, um dinheirinho. “Ah! Os rapazes iam de casa em casa, mas as meninas eram proibidas. Se uma menina batesse na porta diziam que dava azar para as pessoas daquela casa. Então eram só os meninos que podiam ir”, lembrou Maria. Minha mãe acrescentou: “Eu guardava troquinhos para dar aos meninos que vinham na porta desejar um bom princípio de ano. Eles sempre vinham! E os meus meninos iam bem cedo, bem cedo! Voltavam com doces e alguns trocados no bolso, era uma diversão.”

Esse costume, ao que se sabe, vem de uma tradição medieval dos países europeus de origem latina. As crianças saíam em romaria, após a missa de ano novo, desejando um “bom princípio de ano” e pedindo dinheiro com a intenção de comprar doces. Quem viveu em cidades interioranas deve ter na memória o bater palmas ou tocar campainhas acordando vizinhos que, em geral, recebiam as crianças com um sorriso no rosto! Quem chegasse primeiro levaria o maior brinde. Se fosse menino, recebia quantia maior e seria sinônimo de sorte para quem doasse.

Conjecturamos o motivo pelo qual as meninas eram proibidas de saírem com eles. “Meninas não saíam de noite, era perigoso” disse a mãe. Na construção cultural do gênero, as meninas e as mulheres deveriam ficar em casa e não se exporem aos falatórios da vizinhança. Seus corpos deviam ser resguardados dos perigos da rua, diga-se, dos abusos sexuais. Além disso, meninas não lidavam com dinheiro, um ranço do patriarcado que as mantinha longe das coisas do espaço público e das finanças da casa. Por quê daria azar para a família que abrisse a porta para uma menina? O gênero está em todas as relações em que se bate o olhar. Todas.

Virou ano, mas, infelizmente, as violências são incontingentes e se reproduzem nesta cultura machista estrutural. Continuarão ocorrendo feminicídios, estupros, mortes por abortos clandestinos, assédios, prostituição infantil. Em Santa Catarina, 59 mulheres foram assassinadas por serem mulheres em 2020 ou, em média, um assassinato a cada seis dias. Configura-se uma verdadeira pandemia esses assassinatos feminicidas que violam os direitos humanos. Como quebrar essa cultura machista? Com educação de gênero em todas as fases escolares e com políticas públicas eficazes. Desgraçadamente é o que não temos.

Terminamos o ano com uma notícia de alento: na Argentina, mulheres, e também homens parceiros, conquistaram a aprovação da Lei que descriminaliza o aborto. As mulheres que decidem interromper a gravidez podem fazê-lo de forma legal, segura e gratuita no sistema de saúde até a 14ª semana de gestação, conforme aprovação no Senado.  A maré verde, cor símbolo do Feminismo no país, tomou as ruas, exultante. “A legalização do aborto na Argentina, sabemos, é a chave de um gesto massivo de antifascismo na região e no mundo” e vem na vanguarda dos direitos sociais em toda a América Latina.  Sempre na esfera da disputa política e religiosa, esperamos também conseguir esse direito de escolha sobre nossos corpos.

O ano muda no número, mas não mudam as estruturas. Direitos Humanos continuam sendo políticas humanitárias indissolúveis, vitais, inegociáveis, essenciais, invendáveis. “O direito de sonhar não consta entre os trinta direitos humanos que as Nações Unidas proclamaram em fins de 1948. Mas se não fosse por ele, e pelas águas que dá de beber, os demais direitos morreriam de sede”. É mesmo, Eduardo Galeano, temos o direito de sonhar.

Se o ano velho não acabou com a gente, vamos viver esse novo ano com mais cuidados, generosidade e solidariedade. Redescobriremos abraços mais calorosos, daqueles que a gente chora de alegria nos encontros e que definem nossa humanidade. Como disse Carlos Drummond,

“Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo,
eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre”.

Se nada fizermos pela paz, não adianta esperar por um mundo melhor. O que precisamos mudar são as nossas atitudes.

A todas as pessoas, desejo um Bom Princípio de Ano Novo!!

Marlene de Fáveri, 03 de janeiro de 2021.

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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