Domingo, treze de dezembro de dois mil e vinte. Desde menina tenho a impressão de que o mês de dezembro voa. Professores trabalham dobrado neste mês com avaliações, fechamento de semestre, reuniões de conselho de classe e planejamento. Era sempre assim antes de aposentar-me. O que mudou? Assumi outros compromissos e por isso custo a dar conta principalmente dentro de uma pandemia. Escrever toma tempo, requer dedicação. Nesta última semana do ano que estou em Florianópolis dedico-me aos escritos e guardados. Mas logo volto para minha mãe, para a horta e minhas botas!

Para qualquer lado que olho me vejo numa cidade mergulhada em um suco de corona. Um caos anunciado. Pior que isso:  a gente se acostuma com a realidade caótica. Santa Catarina está em alerta máximo: são 4.230 óbitos e 417 mil pessoas contaminadas. No Brasil, passam de 180 mil mortos. E o povo nas praias, como se o amanhã fosse só miragem… Maldito vírus, e malditos ferrabrases das cavernas que zombam dos mortos. São perversos e criminosos.

No ano passado, por estes dias, promovi uma festa de aniversário reunindo amigas e amigos. Foi linda, e dancei tango para convidados! Naquela ocasião, terminada a festa, ficou acertado que faríamos a próxima neste dezembro, com direito a milongas e muito samba! Faríamos… O encontro com pessoas queridas, e que têm a ética do cuidado, são de esquerda, democráticas, generosas e amigas. Me energizam. Agora, nada de abraços, quanto mais dançar, que lástima. Mas estamos conectadas!

Tango com Herber Benítez, dezembro de 2019, em Florianópolis/Foto: arquivo pessoal

Acompanhei relatos de amigas e amigos nas redes sociais durante a pandemia sobre a estranheza dos aniversários comemorados na solidão de um apartamento. Imagens de bolo solitário, auto brindes e reclamações da falta de beijos e abraços presenciais invadiram as telinhas. Algumas pessoas tiveram companhia pelo ‘níverzapp’, acalentando passagens da idade. Quase todas as mensagens dizem da esperança de relações humanas com mais escuta, partilha, solidariedade e afetos. Que importa o tempo que nos passa se continuamos vibrando??

Conta a lenda que Chronos, o deus do Tempo, personifica um senhor que parece reger os destinos da humanidade. Numa representação da mitologia grega, o tempo aparece com caráter destrutivo, porque tudo o que existe pode findar, sendo impossível fugir dele. As religiões, principalmente as monoteístas, construíram seus alicerces na finitude do tempo terreno e no alcance de um tempo divino. Mas o que é o tempo? Filósofos, dos antigos aos mais contemporâneos, têm se debruçado para entender o tempo em teorias diversas. Henri Bergson, por exemplo, entendeu o tempo como uma passagem, um fluxo da vida interior ou a experiência humana entendida como uma duração. Mas fiquemos no nosso tempo…

O tempo cronológico como conhecemos escorre pelo tique-taque dos relógios, o vai e vem dos sinos, da areia escorrendo na ampulheta, das badaladas do Big Ben de Londres, no do canto do galo…  A organização do tempo foi construída a duras penas: no início da Revolução Industrial foi preciso ‘educar’ as pessoas à força para obedecerem ao tempo das máquinas e do trabalho. Tanto é que hoje somos pessoas-máquinas regidas pelo tempo do trabalho e pelo cartão ponto. Mas esse é o tempo do capitalismo. Outros tempos, como o cíclico, o das estações do ano, o das luas, o do calendário judaico e dos calendários de outras culturas têm outros marcadores.

Contamos o tempo através da passagem dos anos por nossas rugas, ites, oses, lentidão nos gestos, olhos que embaçam. E através das fotografias – “como eu era jovem e magra!” a gente diz quando se vê na imagem do tempo pretérito. Se você pudesse voltar no tempo, o que faria? Não, ele não volta. “Em que espelho ficou perdida a minha face?” pergunta, num poema, Cecília Meirelles. Nos meus quinze anos, minha mãe presenteou-me com uma fotografia. Foi um acontecimento: cortar os cabelos, usar uma blusa nova e a única gargantilha que eu possuía, ir ao um estúdio… e, claro, retocaram, o que era moda. Ah, guardou minha face!

O que fica do tempo é a experiência acumulada na memória, nas cicatrizes do corpo e da alma. Boas ou ruins, mas cicatrizes. O que dá sentido à vida é o quê e como vivemos, porque somos a soma dos conhecimentos, aflições, ternuras, medos, prazeres, conquistas, amores, afetos, indignações, espantos e, sobretudo, cuidados.

Em todo caso, com ou sem pandemia, a gente faz aniversário. Não há ninguém que não tenha feito aniversário neste ano inóspito, desde que tenha conseguido ficar vivo.  O que muda? O tempo não muda, quem muda somos nós. O tempo é abstração. Não se pode pegar o tempo, nem pará-lo com uma manivela. Mas ele existe como passagem de nós. Somos mortais, limitados. O tempo fica quando morremos. Todavia, é a moeda mais cara que existe no mercado: quanto daríamos para viver mais um ano, um mês, um dia? Quanto vale um minuto?

Quem pode escolher seu tempo? E os usos de seu tempo? Quem tem o direito ao tempo do ócio?  Cresci ouvindo que tempo é dinheiro e que descansar é luxo. Acaso não precisamos do luxo do descanso?  No que vale a pena investir nosso tempo?  Ouve-se que só é rico quem tem tempo e que tempo é remédio.  É, faz descansar, pensar, refletir, largar os músculos numa almofada. Cuidar-se.

Vida é tempo. “Não tenho mais como comprar tempo e os anos que me faltam são para viver intensamente” disse a amiga Mônica Sol Glik. Concordo.  Quero meu tempo para escrever com a pena solta, paixão, tesão, vontade… O que me conforta é que todas as pessoas envelhecem à mesma proporção que eu. Não é consolo, claro. É constatação. Já pensou se só você envelhecesse? José Saramago, um mestre das coisas do tempo, ponderou: “Nao tenhamos pressa, mas não percamos tempo”. Quando interrogado, já em idade avançada, sobre o que desejaria ter e ainda não obtivera, respondeu de pronto: “Mais tempo”. Ah, nossa finitude…

Caetano Veloso, na Oração ao tempo, fala que o tempo é “Compositor de destinos, Tambor de todos os ritmos”.  Nana Caymmi responde: “E o tempo se rói/Com inveja de mim /Me vigia querendo aprender /Respondo que ele aprisiona /Eu liberto/Que ele adormece as paixões, eu desperto /E gira em volta de mim /Sussurra que apaga os caminhos…”  Discordo de Cazuza de que o tempo não para porque o tempo não anda: quem passa e anda somos nós, finitos. Não resolve quebrar o ponteiro do relógio: o tempo é presidente.

“Quem mata o tempo não é um assassino. É um suicida’, ironiza Millôr Fernandes. É possível matar o tempo? Ou, quando se mata o tempo, ele morre? O tempo ruge ou urge? Qual tempo que urge? A pandemia desnorteou nosso tempo? Ou fomos nós que desnorteamos com as mudanças a que ela nos obrigou? Em meio a esse desvario de tempos, o que fica mesmo são os amores que tivemos, os cuidados que dedicamos, as ações humanitárias que fizemos, o espaço que preservamos.  O tempo fica, nós vamos. Que o nosso tempo pandêmico faça com que aprendamos profundas lições.

Para historiadores, os marcadores do tempo são falaciosos, porque a experiência humana é que constrói o tempo. Hoje, o tempo da informação não é mais o mesmo. Ler um jornal, despretensiosamente, num banco de praça ou na poltrona, pode ser considerado perda de tempo. As redes sociais comem nosso tempo – por que gastamos tanto dele nas telinhas? Nossa cabeça está ocupada demais com as notícias que nos alarmam e nos consomem. Não temos mais tempo para ouvir os sons ao redor.

O tempo das mulheres é diferente do tempo dos homens? Pensemos: a gestão do tempo para as mulheres requer desdobres. Elas estão sempre planejando este ou aquele afazer antes de dormir, antes de sair para o trabalho, depois do almoço. Lembro-me de minha mãe lavando roupas no escuro da noite porque o dia era carregado de outros afazeres. Minha nona acordava muito cedo e era sempre a última a ir dormir e, quando ia, os homens da casa já roncavam.

O tempo delas parece menor, no entanto é o mesmo que o dos homens. Elas acumulam tarefas da casa e dos cuidados com todos da família, dormem menos e cansam mais. Têm um volume muito maior de urgências diárias e das coisas essenciais na manutenção da casa e na reprodução da vida, um tempo não é contado nem valorizado. Minha mãe não teve tempo de se dar ao luxo do descanso, tampouco minha nona. Quantas mulheres viveram, e ainda vivem, sem os prazeres do descanso e de um tempo para si?

Qual é o tempo da pandemia? Para muitas mulheres, ainda mais violento e sobrecarregado. Muito se tem dito por aí desse desvario do tempo pandêmico. Eu mesma já declarei várias vezes do meu sair da casinha, atrapalhada com os horários e dias e calendário. Mas o tempo é o mesmo, eu é que despiroquei. Este vírus veio para marcar um novo tempo para a humanidade?? Deixo um poema feito em trinta de março:

O tempo parou?
Parou o tempo?
Paramos nós?
Canceladas viagens,
passeios, almoços,
reuniões, aulas,
aniversários, cultos,
funerais, baladas,
comícios, cinemas,
praias, tangos.
Encolheu o espaço?
infiltrado em ruas,
estradas, trilhas,
sapatos, corrimões,
elevadores, favelas,
bocas, mansões,
moedas, celular,
máscaras, mãos.
Em nosso tempo,
no mesmo espaço
cumpre-se a profecia
de Raul Seixas – a
terra parou.
Paramos para aprender
e, talvez, compreender
que somos uma partícula
do nada sem o sentido

Todas essas perguntas sobre o tempo fazem pensar. Fico com a sabedoria de Clarice Lispector: “O tempo corre, o tempo é curto: preciso me apressar, mas ao mesmo tempo viver como se esta minha vida fosse eterna”. Costumo fazer determinadas coisas como se fossem a última vez. Sexo, por exemplo: a expectativa do amanhã limita os prazeres do hoje e então deixo voarem os sentidos. Tente!

De tudo isso, eu, enrobustecida, bendigo a vida! A minha, a de minha mãe e de minha filha. A de meus irmãos e irmã, sobrinhos e sobrinhas. A dos amigos e das amigas. Das pessoas do bem, democráticas e generosas.  O tempo de cada pessoa deve ser usado para não passar em vão neste mundo.

Deixo um convite para escutar os sons do tempo, acariciá-los e partilhá-los com os sons da vida. Apesar das discordâncias e diferenças vamos partilhar este lugar que ainda existe. Cuidar é dar sentido. Como você cuida dos seus? Em Rosa e o Momo, um filme raro, percebi que a finitude é só um pedaço do tempo quando há cuidado e enxergamos a pessoa que amamos nos seus limites.

Eu celebro a vida. Venham tormentas, trovoadas, raios, chuvas, ventos, frios, calores… sei que também virão amores, afetos, conquistas e gostos!  Enquanto eu viver, quero todas as pregas que me vierem, os cabelos brancos, as varizes, as dobras e manchas nas mãos. Não me importo nada com o fato de estar envelhecendo. Tenho a sorte de ouvir minha filha dizendo “te amo, mãe!” e de abraçar minha mãe e poder dizer: obrigada!

“Afinal, em meio da vida sempre se faz as seguintes contas: temos mais ontens ou mais amanhãs?” Espero os amanhãs, Mia Couto.

Marlene de Fáveri, treze de dezembro de 2020. Florianópolis.

Marlene de Fáveri

Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC. Membro do Laboratório de Relações de Gênero e Família (LABGEF), do Instituto de Estudos de Gênero (IEG), do GTGênero (ANPUH Brasil) e da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil (AJEB). Autora de artigos, capítulos de livros e artigos de História, Gênero, Feminismo, Divórcio, Mercado do Sexo, Mídias. Foi processada em 2016 por ex aluna no teor da ‘escola da mordaça”, vencedora no processo. É feminista, poetisa, escritora e militante pelos Direitos Humanos e cidadania, com foco nos direitos das mulheres. Participa do Grupo de Poetas e Escritores Mario Quintana, fundado em Itajaí em 1988, com publicações em coletâneas e diversas premiações, como para o Off Flip 3023. É colunista no Portal Catarinas - jornalismo com perspectiva de Gênero. Em 2021, publicou dois (02) volumes de Crônicas da incontingência da clausura – cotidianos da pandemia (Letras Contemporâneas) uma série de 54 crônicas escritas no calor dos acontecimentos da pandemia, com foco no feminismo e nas fissuras de viver num tempo pandêmico. Em 2022, escreveu e organizou o livro O Ultrarrealismo na cena literária de Itajaí (Traços & Capturas), e o livro de poesias feministas: Se pulsa, arde e resiste (Infinitta Leitura).

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