Crônica da incontingência da clausura (34) – ou os corpos dos mortos pertencem às mulheres
Domingo, primeiro de novembro de dois mil e vinte. Chegou novembro, acreditem! Foi a quase oito meses que o mundo viu-se, no susto e despreparado, dentro de uma pandemia. Entre a inicial incredulidade e o isolamento social, hoje temos rotinas muito diferentes e alguns hábitos, impensáveis antes do covid19. Fico imaginando no que cada um de nós pensou naquele março, e como representamos hoje a experiência de viver numa crise pandêmica, que revirou sentidos e outras formas de fazer coisas até então banais e tão cotidianas. É, assim aprendemos a resistir.
Voltei a Florianópolis por uns dias, e não sem preocupações com minha mãe, embora saiba que está bem cuidada. Recomendei que não deixem faltar água nas plantas, embora fariam mesmo sem que eu pedisse. Notícias da casa de Turvo dão conta que a Tchê anda sonolenta e com a barriga protuberante – ah, espere até eu voltar! Quero acompanhar a primeira maternidade da felina que está sendo mimada e tendo a sua disposição camas de gatos confortáveis na garagem e no paiol. Um certo instinto materno me pega desde que os pintinhos quebraram as cascas dos ovos e agora, tomada de afeto, me vejo à espera dos filhotes da Tchê. Quantos serão? Que nomes darei a eles? Ou a elas? Ou a eles e a elas? Que cores terão? Laura e eu, é claro, vamos disputar para escolher os nomes!
Escrevo neste Dia das Bruxas, e finda-se outubro. Recordo que, quando era pequena, este mês mal terminava e a preocupação com o “Dia das Almas” se anunciava como um acontecimento na casa de minha nona. Limpar túmulos dos parentes antecedia a colheita de flores – plantadas na época certa para florir nas almas – preparo de velas e ornamentos.
Minha mãe tem o costume de limpar o túmulo, renovar flores e deixar arrumado o local onde descansam meu pai e minha irmã. Em geral nessas ocasiões faz-se silêncio e fala-se baixo, num ritual de rememoração respeitosa. O cemitério de Turvo se transforma num campo colorido nestes dias e muita gente tem o hábito de levar coroas de flores, acender velas e rezar. Assim também acontece no de Vila Maria, Florianópolis, Lages e mundo afora. É também uma ocasião de visitar túmulos de outros conhecidos que proporciona encontros e muita conversa.
É que lá pelo século 13 um bispo francês incluiu o dia dois de novembro no calendário da Igreja Católica como o Dia de Finados, por vir em seguida do Dia de Todos os Santos, capaz de darem força para as almas em perigo!
Todavia, cada cultura cultua seus mortos de forma distinta, assim como são diferentes as concepções de vida após a morte. Por exemplo, para o Espiritismo, a morte é uma passagem.
Para o Catolicismo hora de se apresentar na porta do céu, esperar o funcionário arcanjo localizar sua ficha corrida, fazer a leitura e dar o veredicto para sua alma quando chegar o juízo final. Aí que mora o perigo! Assim diziam quando eu era pequena.
O Dia de Finados é uma data marcante e uma tradição que envolve muita religiosidade em torno das homenagens aos mortos. O historiador Lourival Andrade Junior pesquisou, a partir de observações no Dia de Finados, no Cemitério Cruz das Almas, em Lages/SC, a religiosidade não oficial e as práticas devocionais no catolicismo popular brasileiro, sendo impressionante como se constroem mitos, crenças e devoções em torno das almas. Sua tese intitula-se Da barraca ao túmulo: cigana Sebinca Christo e as construções de uma devoção, disponível online.
No México, o Dia de los Muertos passa-se com festa. A imagem da caveira é venerada como um símbolo de respeito à vida e homenagem aos entes que morreram. A caveira mexicana, estilizada, colorida e decorada com desenhos de flores, foi criação do artista José Guadalupe Posada (1852-1913), que popularizou a imagem na sua obra ‘La Calavera de La Catrina’. Na figura do esqueleto, o destaque é uma dama da sociedade usando chapéu, numa satírica crítica ao modo como vivia a alta sociedade mexicana da época.
Enquanto isso minha memória se acende para outro tempo: “Andiamo al cimitero, tosatela, pregare ai morti” – era minha nona explicando sobre a montoeira de flores, na maior parte lírios e copos de leite, ocupando todo o espaço da aranha (carroça). Nona Henriqueta era uma mulher de baixa estatura e usava um lenço protegendo a cabeça, um vestido sem decote, com mangas até os cotovelos e cujo comprimento ia bem abaixo dos joelhos. Foi a mulher mais católica e beata que conheci e com quem aprendi os dogmas religiosos e construí as primeiras representações sobre a morte, pecados e castigos.
Eu era pequena, devia ter oito anos, na ida ao cemitério ela me ensinou as diferença entre céu, inferno e purgatório. Com uma explicação bem didática, no sacolejar da carroça, foi me explicando sobre pecados e o destino das almas: as boazinhas, bondosas, caridosas, honradas, boas católicas, obedientes e imaculadas iam para o céu e junto de Deus. Almas rebeldes, com pequenos pecados têm que se purificar e pagar as dívidas com dor e sacrifício: no purgatório, lugar de passagem transitória – alguém ouviu dizer que alguem que conseguiu sair do purgatório?
Obter o perdão dos pecados e chegar a Deus era o premio obtido à custa de muitas penitências e expiação. A palavra purgatório deriva do verbo purgar, ou livrar-se de impurezas através do sofrimento.
Isso remete a um pedaço torpe da História e que nos envergonha: as casas de purgar nas fazendas de açúcar no Brasil Colônia era o lugar do cozimento do caldo de cana e do descarte das impurezas, num trabalho sofrido e animalizado. Purgar quais pecados? Não ter nascido branco nem católico? Mesmo batizadas, pessoas negras, eram exploradas e açoitadas, e Igreja, por supuesto, fechava os olhos a estes castigos em troca de boas recompensas pecuniárias. Esse esquema asqueroso, sustentado pela elites agrárias, evidenciava uma estrutura apodrecida nos seus preconceitos raciais, no domínio de almas e corpos na exploração do trabalho. Assim tambem foi a exploração dos indígenas; eles continuam sendo usurpados de seus territórios e de seus modos de vida. Criminoso isso.
Quanto ao inferno, nona explicou mais ou menos assim: aos ímpios, infiéis, matricidas, homicidas, suicidas, criminosos e com pecados da carne – como o sexo por prazer – o destino das almas era queimar eternamente nas chamas do inferno. Eu imaginava estes três possíveis desfechos e me intrigava com os corpos esturricados saindo do purgatório e sendo recebidos no céu. A esses pecadores mortais – menos os pecados da carne, que não sou doida! – acrescentaria hoje feminicidas, estupradores, abusadores, racistas, sexistas, homofóbicos, aporofóbicos e fascistas lesa pátria e outros bandidos. O inferno os merece.
Lembro que na casa da nona havia um quadro com a imagem das pessoas que morriam e o caminho que seguiam: a maior parte despencava de um penhasco no lado direito do quadro, e caiam no fogo, espetadas pelo demônio. Parte delas iria purgar os pecados e só algumas almas puras iam para os braços de anjos que as levavam até Deus no seu trono. Pinturas sacras que versam sobre o purgatório e o inferno são aterrorizantess, com o intento de intimidar, assustar, amedrontar e ‘educar’ pela imagem – que nunca viu uma pintura de um demônio empurrando pecadores para o inferno?
Os cemitérios são lugares que permitem estudos históricos e antropológicos. O que difere um túmulo do outro em geral é a classe social do morto. Em Turvo, passear no cemitério é um exercício de percepção das diferenças sociais e econômicas das diversas famílias, cujos nomes são gravados em mármores robustos e distintos. À outra classe, a que não disputa visibilidades, tem seus túmulos simples e singelos, sem esquecer as almas que vão para valas comuns, por vezes sem sequer o direito a um nome mal escrito numa cruz tosca e torta. São os desvalidos de tudo.
Sempre que eu viajava – antes deste vírus medonho nos enfurnar – gostava de visitar cemitérios. Garanto: é um espetáculo arquitetônico, artístico, iconográfico, na estatuária, nas inscrições, nas imagens que dão a conhecer o lugar dos mortos e, nas suas frestas, ler a cultura da gente daquele lugar e suas formas de ver a morte. E o que dizer do Cemitério La Recoleta, em Buenos Aires? Um espanto de luxo e grandiosidade. Elisiana Trilha Castro, minha ex-aluna, especializou-se nos estudos da arte tumular ou arte funerária e todas as suas ramificações. Produziu estudos importantes sobre as coisas que envolvem a morte.
O historiador medievalista, Geoges Duby, observou que os cuidados dos bebês e dos mortos pertencem às mulheres. As pessoas em geral morriam em casa, rodeadas pelos familiares, e cabia às mulheres limpar e preparar o corpo, vestir a mortalha, ajeitar no caixão e organizar o velório que era realizado na residência do morto. Em geral, arredavam-se os móveis na sala de visitas para dar lugar ao caixão. Eram das mulheres também o provimento das flores, coroas, velas, orações, organização dos túmulos e acompanhamento dos ritos até o enterro.
Em algumas culturas, famílias de posses contratavam as carpideiras, mulheres pagas para chorar o defunto alheio – já que os homens não deveriam mostrar qualquer tipo de emoção crua como a tristeza e o choro. Deles era esperado serem fortes e líderes de famílias patriarcais. Eis o gênero infiltrado nas entranhas da morte!
Na hierarquia dos trabalhos da esfera do cotidiano, no meu tempo de criança, e mesmo depois, era a família, especialmente as mulheres, que providenciavam todo o rito de passagem com a firme convicção de que as orações levariam a alma do morto direto para junto de Deus. Hoje, quem tem condições financeiras contrata uma agência funerária para essa função. Será que a alma via para o céu do mesmo jeito? Tanto nos enterros quanto nas missas, reza-se ainda hoje uma oração para as almas penadas purgando pecados. Respeito quem crê.
Neste ano, o Dia de Finados não será como os outros: rituais e preces que juntam pessoas têm riscos de contaminação pelo covid-19. Mas mesmo assim muita gente não seguirá os protocolos, alinhada a um irresponsável, arrogante e prepotente mandatário. No sofrível Brasil já beirando 160 mil mortos, penso como deve ser triste perder alguém próximo sem um ritual de despedida. Quem mais perece é a plebe sofredora, abatida, explorada, cansada, esquecida dos seus direitos. Imersos num tempo tenebroso de crise sanitária, acumulando déficits de vidas, crise política e econômica inimaginável, estamos reféns do obscurantismo de governantes nacionalicidas.
De que serve um jazigo de ouro e mármore, se o finado foi um miliciano feroz? Um governante genocida? Um vil estuprador? Um nazista? Um racista? Um sexista? Um feminicida? Um capitalista explorador? Um tirano inumano? Um destemperado covarde? Um aporofóbico arrogante? Um usurpador dos bens públicos? E supreendentemente, estamos vendo mulheres que apoiam esses absurdos. E tão perto de nós.
Todavia, a pandemia e as perdas humanas pelo convid-19 têm aberto frestas para pensar a morte e as solidariedades. Muita gente foi salva, é verdade, não porque teria ingerido uma ‘quina de cloro’, mas devido ao trabalho árduo e corajoso de equipes médicas e de enfermagem. Sobretudo, porque governos populares nos legaram o Sistema Único de Saúde, o SUS, integral e universal, que garante equidade e oferece assistência a milhões de brasileiros e brasileiras. Nesse tempo de pandemia, o SUS mostrou-se, mais uma vez, imprescindível para acolher, tratar e salvar as pessoas no atual panorama de saúde no país.
“Nós que aqui estamos por vós esperamos” – um documentário onde pessoas são memórias, vozes, risos, trabalho, cansaço, amor, esperança, afetos, dor, prantos, medos, saudades. E morrem. São corpos. São almas. No caminho havia um bêbado ao volante, uma guerra, uma bala perdida, um incêndio, uma barragem que se rompe, uma máquina cortante, um vírus, uma peste, uma arma na mão de alguém…
SALVE O SUS QUE SALVA VIDAS!
Marlene de Fáveri, 01 de novembro de 2020. Florianópolis.