Domingo, vinte de setembro de dois mil e vinte.  Voltei para Turvo faz uma semana. Era domingo. Saí de Florianópolis por volta das treze horas. Vim sozinha, como fiz todas as vezes durante a pandemia. No caminho, desviei da rodovia e entrei em Enseada do Brito para apanhar, das mãos da própria autora, Urda Klueger, seu livro No tempo da Ana Bugra. Muito bom ver a amiga e confabular sobre diversos assuntos, mesmo que a três metros de distância e ambas usando máscaras. A falta dos abraços incomoda, mas é o que temos por ora. De seu pomar, apanhei ameixas e acerolas, degustadas pelo caminho!

Diferentemente das viagens anteriores durante a pandemia, estranhei o aumento do fluxo de automóveis e caminhões. Parei no restaurante Engenho, lotado de gente que vai e que vem. Notei que entravam com a máscara e usavam, para se servirem, luvas plásticas fornecidas no local. Me servi e procurei uma mesa com distância recomendável. Enquanto degustava um café com uma fatia de brownie – um luxo da viagem – notei que as pessoas, assim que se sentavam à mesa, tiravam as máscaras e confraternizavam quase grudadas. Tudo bem que não dá para comer usando esta nova peça do vestuário, mas deve-se atender aos cuidados mínimos.

Terminei o café e me dirigi ao caixa, não sem antes apanhar uma cuca generosa recheada de doce de leite para minha mãe, como sempre faço nestas viagens. Ali, mantive distância numa fila e percebi que muitas pessoas, tão logo pagavam a conta, tiravam a máscara e conversava, ou falava ao telefone, ou fumava, alheia aos passantes como eu. É, temos problemas. Fiquei furiosa.

Segui a viagem. Motoristas ensandecidos ultrapassavam em velocidade bem acima da permitida naquele trecho da estrada. Que inferno isso, pensei. Percebi que os apressados eram na totalidade – pelo menos os que me ultrapassaram – homens e brancos. Correm assim para assegurar macheza? Portariam uma arma no porta-luvas? Esse comportamento é para demonstrar virilidade? Potência?  Disputar território?  Isto revela muito sobre uma cultura que constrói masculinidades violentas – por certo são covardes para uma cultura do respeito. Para piorar, seguem o inominável, aquele mesmo que neste momento apresenta projeto de lei pretendendo afrouxar as leis de trânsito. Isto tem exacerbado e mesmo autorizado riscos e violências. Repudio veementemente essas pessoas e externo minha dor por tanta ignorância.

Ao cruzar a ponte Anita Garibaldi – obra que tem a marca da ex-presidente Dilma Rousseff e que me representa – um escroto sem noção querendo por certo ostentar o carrão que vale uma fortuna, passou pela ponte voando e fez uma ultrapassagem que me obrigou a diminuir a velocidade.

Por muito pouco não batemos os carros. Isto obrigou-me estacionar, respirar e me refazer do susto. Como não associar esse comportamento ao machismo e à ostentação do falo ao volante?

Lembrei de uma monografia que orientei quando lecionava na Univali. A aluna trabalhava numa auto-escola onde atendia pessoas de diferentes classes sociais, etnias, raças e gerações. Com a compreensão do gênero como categoria de análise do cotidiano, treinou o olhar e deu-se conta das brutalidades que via, ouvia e sentia no cotidiano do trabalho. Passou a ouvir mais atentamente, inclusive as piadas machistas ditas por homens quando falavam de mulheres ao volante. Aliás, sei que existem sites de piadas machistas sobre motoristas do sexo feminino, desqualificando-as.

Um exemplo: um homem levou a esposa para fazer a habilitação e, ao saber que o curso era de dez aulas, disse: “Põe aí vinte aulas, porque é mulher, vai demorar pra aprender já que dirigir é coisa de homem”. Alguns não queriam instrutores homens para esposa e/ou filhas por recearem passadas de mão na perna da mulher. Outros, ao contrário, exigiam instrutores homens, justificando que as mulheres não eram boas instrutoras e assim por diante. No cotidiano são vivenciadas as desqualificações e preconceitos de gênero advindos do machismo estrutural.

Em 2017, uma pesquisa mostrou que “apenas 6,4% dos condutores envolvidos em acidentes de trânsito foram do sexo feminino e 93,1% do sexo masculino”.  Este dado faz com que as taxas de seguro automóvel sejam mais baratas para as mulheres na maioria dos países. Fruto de uma educação tóxica – não chorar, não falar sobre si, mostrar valentia, não pedir ajuda, não broxar, disputar, ser viril e não ter medo – esses homens se acham donos também das estradas. Não se tem notícia de que uma mulher tenha puxado a arma numa discussão no trânsito, já dos homens…  Essa masculinidade educada para a violência reflete-se em todas as esferas do cotidiano, e revela-se também nos comportamentos do trânsito.

Refletindo assim, notei que já estava perto de Meleiro. Entardecia. O sol que me acompanhara por toda a viagem se fez tão majestoso que parei no acostamento e o fotografei!  Ei-lo:

Foto: arquivo pessoal

Cheguei em casa! Abraçar minha mãe, ao mesmo tempo em que Guevara e Tchê se enfiam entre meus pés, ouvindo cacarejos e gorjeios, rodeada de verdes e flores, é um privilégio. A horta está linda de ver! Rita falou que é muito provável que a Tchê esteja prenha: minha cigana das tangueiras avós, será mesmo? Logo eu, que nem curtia felinos, já me vejo embalando esses miúdos, ora, ora!

Mas não só de abraços de mãe e carinho de gatas se vive nesta clausura. No cotidiano da imprevisibilidade as táticas são imprescindíveis. Elas aparecem nos rituais do dia a dia como “artimanha astuciosa”, invadem espaços e nos surpreendem nos detalhes e fragmentos – assim ensina Michel de Certeau, historiador do olhar para os detalhes capciosos. As coisas mais miúdas do cotidiano dão-nos conta das astúcias e improvisos. Vejamos.

Esta semana aconteceu um fato que me fez a escrever o que segue. Já contei que estou aprendiz para os cuidados com minha mãe e que ela está esquecendo as coisas mais corriqueiras. Se atrapalha, mistura tempo e espaços e põe-me, por vezes, em apuros. Estava eu na horta quando ouvi um grito de minha mãe. De um salto eu estava a seu lado, e ela disse: “Estou tentando matar uma cobra, olha, é uma jararaca!” enquanto tentava imobilizar a serpente com o pé, e estava de chinelos! Foi então que vi a cobra entre as pedras de brita. Mas a mãe não acertava a cabeça da cobra e se desgovernou, perdeu um chinelo, caiu e se esparramou no chão. Lívida e com medo de uma picada, tive menos de um segundo para decidir se atendia a mãe ou tratava de eliminar a cobra.

Foi quando minha mãe disse: “Mata, mata ela logo, ela vai me morder”. E ia mesmo, dada a situação. Percebi que a cobra estava se juntando como num carretel e achatava a cabeça, hirta e furiosa, pronta para dar o bote.  Não tive dúvidas: eu calçava botas de borracha, e com o pé direito pisei na peçonhenta várias vezes. Ela pulava, e na terceira pisada a acertei com a esmagada mortal. Minha mãe ainda estava sentada no chão e, com cuidado, conferi se ela estava machucada, mas foram só arranhões e nenhuma fratura ou algo assim. Olhamos a cobra ali estendida, incrédulas, e foi tudo muito rápido. Como o celular estava por perto, resolvi tirar uma foto da cobra agora morta, mesmo que seu rabo ainda tremelicasse. Era mesmo uma espécie de jararaca  e de quase um metro.

Foto: arquivo pessoal

Enfim, ajudei minha mãe a levantar-se. Foi quando a Tchê, pressentindo um banquete, surgiu numa corrida com a pressa de gatos por comida, e ia abocanhando a cobra.  “Não deixa”, disse a mãe, “ela tem veneno, pode fazer mal à gata!”, exclamou, com razão:  lembrei de seu estado de gata possivelmente embaraçada. Larguei – de novo – a mãe para tirar a cobra do alcance da gata. Procurei ao redor um suporte com o qual pudesse levantar o réptil, com a certeza de que se demorasse segundos a gata comeria a cobra.

Não tive alternativa: peguei a cobra pela ponta do rabo e a suspendi. A Tchê ficou pulando para alcançá-la e ficamos nós duas numa disputa surreal. Então a mãe disse: “Joga bem longe no pasto onde a gata não pode ir”. Assim fiz:  apressei-me rumo a um cercado com pastagens, segurando a cobra pelo rabo, que parecia mais longa com o corpo totalmente solto. Pressenti que estava sendo seguida: parei, virei-me e olhei bem nos olhos da Tchê e gritei: “Fica aí! Volta!” – devo ter soltado um palavrão tão agudo que ela me obedeceu – com passinhos mansos, deu meia volta. Ufa, num arremesso com impulso desfiz-me do corpo da morta, que era uma jararaca! Voltei, e notei que a Tchê lambia as gotículas de sangue da cobra ali no chão. Ah, que comédia! Joguei água – vai que tem veneno!

Ato contínuo, meu irmão e Laura chegaram. Ajudaram minha mãe ainda cambaleante. Contei o ocorrido e mostrei a foto para Laura, a pequena aprendiz de tudo. Sua curiosidade me fez mostrar o lugar exato onde ocorreu o “assassinato da cobra” e conferiu com a imagem. “Foi aqui mesmo, tia, as pedras iguais as da foto”, disse, reconstituindo o local e perguntando detalhes. Não é para amar a pequena Sherlock?

É bem mais de zero horas e me pego contando essa história. Assim acalmo – que dia! Mas ainda não terminou. Enviei a foto da cobra para o grupo do whatsapp da família e contei rapidamente o ocorrido. Pronto: depois do susto e de saber que a mãe/avó está bem, o evento deu o que falar – virou uma comédia teatral com personagens atrizes: a avó, a tia, a gata e a jararaca, cada qual com seu meme correspondente. Ou “uma curadoria de memes muito acertados”, resumiu minha filha Tashi para sua prima Matinay, a que iniciou a narrativa, que virou enredo com imagens, e tudo incentivado pela prima Mariana. Essas meninas são de morte!

Sei que parece mórbido. Deveria eu ter poupado a cobra para que fosse de volta para a mata? “Pobre cobrinha!”, resumiu meu irmão Madi, atiçando mais memes, e me pondo peso na consciência. Eu sei, depois também fiquei com dó. Pergunto: o que você faria numa situação dessas?

Ah, família, que bom ter vocês e contar as coisas e táticas do cotidiano. Mas tem mais:  quando fui medicar minha mãe, já deitada, ela perguntou do que eu ria tanto que ela chegava a ouvir do quarto. Disse que ria porque estava escrevendo sobre o ocorrido com a cobra. “Como? Tu vais contar isso?”. Sentei-me a seu lado na cama e, com calma, li para ela partes das mensagens e mostrei as figuras/memes.

Ela olhou, se demorou ali, e depois disse com certo tom de vaidade: “Vocês fazem um escândalo só por causa de uma cobrinha! Já é a terceira que eu mato nesse mesmo lugar e iguais a esta!”. Arregalei os olhos e não tive palavras senão abraçá-la e acolher sua coragem.  Acontece que, para além do receio de que ela encontre outras cobras e se arrisque a pisotear, tenho passado os dias atenta a esse suposto caminho de peçonhentas. Olho para a brita e vejo cobras imaginárias! Vá saber onde elas se escondem, e ainda ousam passear pelo meu jardim, em pleno entardecer de um dia que foi ensolarado?

A clausura tem disso e faz a gente ver coisas.  Da cozinha, onde escrevo nesta madrugada fria, ouço o gorjeio de um pássaro em tom lúgubre, como se estivesse me dando ordem para ir dormir, ao invés de atrapalhar seu passeio noturno com a claridade que sai pelas frestas da janela.

Confiro as notícias da pandemia e penso que, se a jararaca não nos picou, não será uma moléstia por um vírus medonho e estragado a tirar nossa alegria de viver. Me atenho a uma notícia sobre a política e comprovo que a trama ardilosa e urdida entre palacianos tem mais peçonha que uma jararaca: nos querem caídos e sem risos, mortificados pelo trabalho mal pago, silenciadas as nossas vozes, negada a escola e a educação, ignorada nossa sexualidade.  Não passarão!

Foto: arquivo pessoal

Uso palavras na expressão de meus lamentos e fúrias. E também delas faço uso nas lides de narrar miudezas do cotidiano, este lugar de nervuras e táticas que fazem o mundo mover-se porque nos movem neste mundo – hoje pestilento e ameaçador. Me pergunto: não fosse a pandemia e eu não estivesse aqui com a mãe, este fato teria acontecido? Minha mãe toparia com uma cobra à porta da cozinha se eu não estivesse aqui com ela? A gata comeria a cobra se fosse minha mãe a matá-la? Minha mãe daria conta de se defender esmagando a cobra?  E se eu não estivesse de botas?  A cobra teria passado e passeado pelo jardim, sem ser importunada se minha mãe não fosse pisoteá-la? Talvez sim, porque a pandemia não mudaria o cotidiano da cobra como alterou o nosso. Talvez não… Vá saber!

Sigamos. A vida urge. Estamos vivas!

Dedico esta crônica às pessoas democratas que entenderam a importância da construção de uma Frente Democrática por Floripa para concorrer às eleições municipais! As pessoas, e a cidade, merecem cuidados.

Marlene de Fáveri, 20 de setembro de 2020. Turvo/SC.

 

 

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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