Domingo, nove de agosto de dois mil e vinte. Neste pestilento mês de agosto, no cotidiano da casa de minha mãe seguimos a rotina que, mesmo alterada nos hábitos, parece que os dias seguem iguais. Os noticiários pandêmicos já não nos assustam como antes: nos acostumamos, o que é terrível. Estamos amotinadas/sequestradas//enclausuradas/amedrontadas. As pessoas têm medo, mas mantêm a resiliência apesar de sentirem a falta dos contatos físicos. Estamos cansadas de celas sem grades que, mesmo podendo sair, não o fazemos: temos medo da doença e da morte. Sobretudo da morte.

Esta moléstia infame nos põe receosos de tudo. É um sofrimento manter-se distante dos familiares. Sinto falta dos cafunés e enroscos que meu irmão Madson me acostumara desde sempre: agora, olhamo-nos à distância necessária e, mascarados, tentamos brincar sem o calor dos abraços. Fica um vazio. Eu abraço minha mãe com muito cuidado, tomo conta da medicação e não poderia ser diferente. Ela me alimenta de ternura.

Claro que continuo com medo: sair de casa por qualquer urgência me tensiona os músculos. Nos mercados pessoas apalpam os produtos, manuseiam as frutas, o que me enfurece. Turvo está com alerta máximo, como a maior parte de Santa Catarina. O Brasil chegou nesta semana à soma de cem mil mortos pela covid-19, uma tragédia anunciada. O governo debocha e o ministério da saúde se exime, numa atitude funesta e sinistra. Trouxeram a saúde para o proscênio da política partidária e ignoram vidas. Lamentável. Um nacionalicídio.

Guevera e Tchê sempre enroscados nas minhas pernas: já tropecei neles, ralhei, reclamei, mas continuam me amando. Quando me põem aqueles olhos pidões, eu me derreto. Plantei alfaces no primeiro mês da pandemia, e os estamos consumindo fresquinhos e tenros, assim como todos os temperos, couve, rúcula, rabanetes, tomates cereja, tudo delicioso e sem agrotóxicos. Também colhemos ovos e temos carne: minha mãe, vez por outra, enclausura um galo briguento e depois o mata, de forma que temos essas proteínas. São ovos e carne de galinhas felizes… não somos veganas, Tashi!

Retomei uma habilidade de outrora: fazer polenta! Por que a polenta feita por minha mãe fica lisinha, e a minha tem bolinhas? “É que a água tem que estar bem fervente e temos que mexer bastante até desfazer os nós e soltar o fundo da panela, com cheiro de cozida”, ensina-me ela. Então é assim, vou chegar lá!

A polenta tem uma história: o milho, natural das Américas – maíz – foi introduzido na Europa e inventaram a polenta com farinha de milho (antes, faziam com trigo ou aveia).  Foi alimento importante no suprimento de carboidratos para as populações pobres na Itália, principalmente na região norte, em substituição ao trigo por ser mais caro e era considerada ‘comida dos pobres’. Os imigrantes trouxeram seus hábitos e a polenta foi – e ainda é – um prato consumido no cotidiano das famílias descendentes desses imigrantes.

Cresci comendo polenta feita por minha nona e mãe. Era feita no fogão a lenha num caldeirão de ferro, mexida com a mêscola  – um pau de madeira todo redondo próprio para este fim. Depois de bem cozida, virava-se numa tábua de madeira e era cortada com uma linha de costurar. Me lembro do lugar onde minha nona guardava um carretel de linha!  Me recordo de ter polenta todos os dias no café da manhã e no almoço. “Eu era bem pequena e já fazia polenta duas vezes por dia, de manhã cedo e ao meio dia. De manhã era comida com leite e ovos, e ao meio dia com queijo, carnes de galinha ou porco e fortaia e radiche. Tínhamos fartura de ovos e carne de galinha!  E toda noite era minestra, toda noite!” lembra minha mãe.

O milho era colhido, debulhado com as mãos e levado em sacos a uma atafona onde era moído. Como pagamento, o dono do moinho ficava com uma parte do milho. Fui muitas vezes na aranha (carroça) com a nona e a mãe levar o milho na atafona. Hoje existe farinha de milho de todo jeito e até polenta pré-cozida à venda, mas nada substitui a polenta feita no detalhe e com as mãos de mãe e da nona! Me deu fome essa narrativa sobre polenta!

Foto: arquivo pessoal

Se o cotidiano tem sido rotineiro, esta semana foi também de comemorações. Laura, minha sobrinha, fez oito anos! Não foi possível reunir a família. Perguntei: “Laura, o que queres de presente?”, e a resposta: “Quero brigadeiros, tia! E minestra daquela gostosa!” Como é fácil agradar a pequerrucha! Também reunimos o grupo de tango para festejar o aniversário do professor de tango, Carlos Peruzzo. Cinco meses afastados, e sentimos falta dos abraços e compassos, mas ainda bem que foi possível este encontro virtual. De saudades e vontades, vamos indo. Vida longa e saúde a Laura e Carlos!

Com a pandemia, tenho participado de reuniões on-line na organização do Seminário Internacional Fazendo Gênero, que seria em julho. A comissão decidiu que será na mesma data no próximo ano e totalmente on-line.

Ou seja: uma mudança radical para quem já fez acontecer onze edições presenciais com cerca de oito mil participantes. Modificar o formato com tecnologias novas é um desafio.

Neste último mês dediquei-me ao preparo de falas sobre os temas que defendo, sendo que esta última semana foi exaustiva, mas gratificante. Falo dos assuntos que pesquiso e ministrei aulas durante a vida acadêmica: violências, relações de gênero, mulheres na política, masculinidades, mídias, feminismos e discursos religiosos, dentre outros que se interseccionam. Faço isso a convite de sindicatos, de meu partido político, de coletivos, de pré-candidaturas a vereadoras e em grupos fechados e abertos. Ainda arrumo tempo para escrever as crônicas, sempre à noite.

Foto: arquivo pessoal

Minha mãe continua espantada com minhas tantas atividades, mas ela entende e dá força, me traz café e pergunta sobre o que escrevo. Leio partes, explico o tema, e ela se lembra de acontecimentos de seu cotidiano de mais de oitenta anos. Estamos construindo uma relação ainda mais cúmplice e sempre plena de afeto.

Porém, falar através da tela do computador não é fácil. Tinha feito algumas bancas por videoconferência, mas mudar tudo para o modo on-line me assustou no início. Ainda me perco em links, me atrapalho, mas estou aprendendo.

Estou nas lides de reuniões e lives porque me sinto útil. Sempre estive nos espaços coletivos em eventos, bancas, palestras, oficinas e salas de aula. Se continuo é porque sinto que tenho compromisso com a sociedade. Só pude estudar porque a Universidade era pública, e também trabalhei numa delas, a UDESC. Quero continuar contribuindo para que mais pessoas possam debater, ter curiosidade e querer melhorar as relações neste mundo, hoje tão atolado em perversos projetos fascistas, classistas, racistas e excludentes.

Penso nas pessoas que estão trabalhando em home office e por produtividade, o que está sendo insano: dobrando as horas de trabalho não pago, essa geração sofrerá de LER, dores na coluna, olhos cansados, estresses e ansiedades. O nefasto medonho invisível devora as carnes, mas o capitalismo corrói a população explorada com a mais valia. Confisca a dignidade. Era março, e escrevi este poema ácido e o intitulei: Quem precisa do Marxismo?

Aprisionados no cárcere da solidão
Humanos são entregues
a controles remotos.
Entubados em minúsculos
apartamentos, excluem as relações
de contato, do tato.
Transformados em corvos de si mesmos,
vegetam consumindo alimentos
em latas tóxicas.
Alquebrados da extenuante
produtividade, perdem-se
Nos dias, nas noites,
No tempo sem descanso,
Curvados pelos anos
à frente de telas ácidas,
corcundas de artroses,
lesões e ossos porosos.
Mortificados pela selvageria
capitalista, passam a
andar em círculos, arrastando
o corpo como androides,
Sub-humanos inúteis.
Mortos, não fazem falta:
São substituídos por outros corpos
Aprisionados nos mesmos
cárceres da solidão…

Foto: arquivo pessoal

Esse cárcere desumaniza. Me sensibilizo com as professoras e professores que, de sopetão, foram obrigados a mudar para o ensino remoto, lançados à frente de telas com falhas na programação, plataformas complicadas, falta de recursos, de suporte técnico e do necessário apoio pedagógico. Um estudo mostra que mais de 80% das/dos professoras/es nunca tinha dado aulas à distância e, portanto, não se sentem preparados.

Acompanho os queixumes de colegas que, sob pressão, estão à beira do pânico: estressados, cansados, sobrecarregados, exaustos, preocupados com própria saúde e a dos familiares. Essas pessoas têm dispendido mais tempo com o ensino à distância, se comparado com o presencial, no aprendizado de técnicas pedagógicas e de ferramentas para as quais não foram trenadas, tendo que se readaptar a novas linguagens. Tanto alunos quanto professores da rede pública esbarram na falta de acesso às tecnologias necessárias para as aulas remotas.

A parte mais dura da pandemia cai sobre as mulheres, sobrecarregadas com o trabalho remoto, os cuidados maternos e da casa. Parte delas, além de não contar com a parceria dos maridos, ainda é agredida por deles.

“Os dados mostram que as mulheres estão arcando com a maior parte da carga das tarefas domésticas durante o confinamento”, diz Libertad González, o que não é nenhuma novidade. As professoras têm que conciliar essas tarefas e também preocupar-se com a aprendizagem de seus alunos. É um trabalho hercúleo que exige atenção, concentração e cuidados.  A falta da escola presencial dificulta a observação por parte das redes de proteção social, o que é uma lástima. Haverá pós pandemia? Ou estamos condenadas às aulas de forma remota?

Além desses problemas, professoras e professores sentem a falta do burburinho, dos abraços, dos afetos e das risadas de colegas e dos alunos. Da mesma forma, os estudantes são privados do compartilhamento com os colegas e professoras/es. Criança tem que brincar com criança. Marisa Zanoni Fernandes, num texto precioso, diz do cotidiano escolar e da saudade. O isolamento social forçado pela pandemia revela sofrimentos e nos desloca do eixo e dos lugares dos afetos. Nos desacomoda. Como reacomodar?

É cruel como parte da esfera pública política – e hoje com requintes de perseguição – menospreza e massacra essa classe de trabalhadores e trabalhadoras.

Criou-se uma narrativa de desqualificação de professoras/es, grudada nos projetos fascistas de emburrecimento das massas.

Um Estado que não tem como prioridade a valorização dos professores e a produção do conhecimento é só uma republiqueta míope e emburrecida. Se a magnitude desta calamidade pandêmica tem sido estafante para estes profissionais, lidar com o descaso ao ofício mais necessário ao desenvolvimento de todas as sociedades é um insulto que afronta todo e qualquer princípio de soberania, cidadania, direitos e dignidade.

Dedico esta crônica às professoras e professores. Estou solidária. Às mestras e aos mestres, com afeto. Força e coragem.

Marlene de Fáveri, 09 de agosto de 2020. Turvo, SC.

 

 

 

 

 

 

 

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  • Marlene de Fáveri

    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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