Domingo, dois de agosto de dois mil e vinte. Chegou agosto e este ano se esvai numa torrente agourenta sob o signo do medo. Não tenho ilusões: as expectativas para os cinco meses até que chegue o ano novo não são de alentos. Nem como distopia imaginava viver este ano sinistro dominado por uma moléstia tão funesta. Haja resiliência!

A semana passou em longos dias misturando chuva e sol. Temeroso lavar roupas porque não secam e difícil mexer na terra porque está úmida, e num frio a penetrar nas veias e congelar os pés. O senhor Aires, o jardineiro que me ajuda nas tarefas mais complicadas, ficou doente nesta semana; estou apreensiva. Só tenho pensamentos positivos para que melhore e fique bem.

Quanto a minha mãe e eu, vamos indo na nossa clausura que tem muito verde e tem me acalmado um pouco. Ela colhe alfaces ainda tenros, bem faceira! Em Turvo a cada dia aumentam os contaminados pelo Covid-19 e, sabemos, nenhum lugar é seguro. Nos protegemos e nos preocupamos com os familiares e outras pessoas.

Também fui a uma psicóloga e contei como tenho vivido esses meses pandêmicos e como está sendo sensível lidar com os limites de minha mãe. Me dei conta que nesses cento e trinta e cinco dias depois do susto e da incredulidade de que estávamos numa pandemia, o tempo perdeu o ritmo – se é que o tempo tem ritmo. Sofro de saudades tantas e vontades muitas: juro que quando passar esse assombrado tempo vou dançar tango todos os dias! E fazer mais coisas, e cometer outros pecados…

Minha mãe assiste noticiários. Vez por outra me chama e, assustada, conta das mortes. Teme pelos netos, netas, familiares. “Minha nossa, desse jeito vai chegar a cem mil mortos no Brasil logo! Que triste, um pecado isso”, disse ela. É difícil lidar com os seus medos que se misturam aos meus, então troco de assunto, levo-a ao jardim e à horta e ela espairece. Vou aprendendo estratégias de cuidado e de como responder a perguntas difíceis.

A religião é assunto sempre presente nas nossas conversas. Não que ela seja carola, mas tem consciência dos estragos causados com as cobranças de condutas para as mulheres e as dores daí advindas. Todavia, educada numa família muito católica, sua memória vem e vai em assuntos que caem na religiosidade. Divagamos sobre o que seria pecado, e minha memória volta à infância e aos livros que havia no sótão da grande casa de madeira camponesa de meus avós maternos.

Foto: arquivo pessoal

Havia, naquele monte de livros e revistas, uma imagem que me impressionou:  Adão e Eva sendo expulsos do paraíso, escondendo o rosto e o sexo, envergonhados. Na época, perguntei o porquê da expulsão e me responderam que tinham cometido um pecado mortal e por isso foram castigados. Que pecado seria esse? Intrigava-me porque respondiam às minhas perguntas, mas não explicavam os porquês daquelas respostas.

Quando comecei a ler com mais facilidade, minha nona me deu um livro com a história de santa Maria Goretti, uma jovem de onze anos, católica e italiana que, ao recusar-se a uma tentativa de estupro, foi assassinada e por isso recebeu o estatuto de mártir. Era para eu ler e me cuidar para não cometer pecado… Custei a entender que o medo que eu deveria ter era dos homens. Éramos educadas para nos afastarmos caso um homem se aproximasse, como também não deveríamos usar vestidos curtos e nem mostrar os braços. Minha mãe costurava minhas roupas e gostava de fazer  vestidos mais curtos, uns dois dedos acima dos joelhos, motivo de encrencas com minha nona, que achava um despudor.

Cresci com esses mitos a fustigarem meus sonhos de adolescente. A história de Adão e Eva e o da santa virgem e mártir me açoitava as ideias. Muito depois, estudando sobre relações de gênero e lendo Gênesis, os signos e seus significados: a maçã proibida, a cobra – personagem importante na narrativa – a árvore e o suposto pecado que levou à expulsão do jovem casal – branco e de corpos perfeitos – do paraíso.

Daqueles episódios narrados advieram os discursos do pecado e sua expiação. Às mulheres, pela desobediência a um deus/homem, a dor do parto e a submissão ao marido. Aos homens, por terem se deixado seduzir e aceito a maçã proibida, a condenação: “Porquanto destes ouvidos à voz de tua mulher, e comeste do fruto da árvore de que te ordenei não comer, maldita é a terra por causa de ti; com dor e sofrimento comerás dela todos os dias da tua vida”, diz o versículo.

Mas Eva seduziu Adão por intermédio da serpente. Acontece que, como Eva gostou da cobra e Adão gostou da maçã, o sexo transformou-se em pecado e com seu consequente castigo: a vergonha do corpo e trabalho árduo na terra como lugar de expiação. A serpente? Bem, a ela a maldição de rastejar sobre seu ventre e comer o pó da terra para todo o sempre.

Esta metáfora da desobediência da mulher, e o castigo do domínio do pátrio poder, lhe atribuiu a culpa pelos males do mundo. Adão não pôde resistir, ou não quis – afinal, o paraíso podia ser melhor! – e, segundo o mito, foi ludibriado pela perfídia e astúcia de Eva. Na metáfora, o fruto proibido, motivo da danação, seria a árvore da sabedoria e do conhecimento. Quem o provasse conheceria o bem e o mal. Eis o primeiro pecado: fizeram o que tinham vontade, isto é, fornicaram, e neste ato de desobediência sua natureza humana foi corrompida, recebendo uma natureza pecaminosa com o pecado original.

Então, o mal era o sexo? Ou a desobediência? Ou o conhecimento e o discernimento? O paradoxo deste mito é intrigante. Aliás, todos os mitos religiosos são uma fornalha de paradoxos.

Desde então, sobre as mulheres recaem as culpas e, para atormentar as pulsões sexuais, inventaram o inferno. Nossa, como eu tinha medo de morrer e ir para o inferno! A imagem de um demônio com um garfo de fogo entrando por entre minhas pernas esfumaçava-me as ideias. Com medo do fogo do inferno, eu rezava para ir para o céu! Era obrigatório confessar os pecados antes da comunhão. Me lembro que contava ao padre uns pecadinhos como: “desobedeci a minha mãe, bati no meu irmão, respondi ao meu pai” – eram sempre os mesmos pecados a cada confissão. Numa ocasião perguntei ao padre se esses desvios configuravam pecado mortal ou venial, imagine! Ele deve ter rido, tanto que nem respondeu: me receitou cinco ave-marias, ir-me e não pecar mais.

Foto: arquivo pessoal

Histórias de confessionário eu ouvi muitas. Por exemplo, esta: “No confessionário o padre, que era um missionário, perguntou se eu ajudava com as mãozinhas quando sentia vontade. Eu nem sabia de que vontade ele falava, eu tinha uns doze anos”, contou-me uma senhora octogenária. “Eu achava tão feio ter que contar tudo para o padre… Prá que contar, né?”, completou. Concordo. O confessionário sempre foi um lugar de erotismo para os homens que perguntavam coisas assim e por certo muitos deles se masturbavam.

O pecado de Eva nos acorrentou a maldições. Uma delas é a preservação da virgindade como o tesouro das moças: era assim que eu ouvia sem saber que raio de tesouro era esse. A imagem da santa que morreu virgem livrando-se de um estupro e foi para o céu de vestido branco, mãos postas e auréola continua impressa na parede de minhas memórias da infância. Aliás, temos um mito desses em Santa Catarina: da menina Albertina Berkenbrock que, segundo a narrativa religiosa, morreu para salvar a pureza. Declarada beata recentemente, é considerada a Maria Goretti brasileira. Os imaginários sociais e os mitos se reatualizam e continuam a atormentar meninas, por certo.

Na década de oitenta do século passado, eu vivia os dilemas entre pecar e ser livre. O medo de pecar se misturava aos desejos de me soltar das amarras da sexualidade.  Na época, escrevi:

Mulher!
Liberta teu louco desejo de vida
O peito que arfa sedento de tudo,
E nada és no teu claustro
Longe do que dizem ser pecado.
Mulher!
Pecado é viver sem desejo de tudo
Liberta este cio, tão louco de vida!

No topo das narrativas católicas estão o pecado da carne e o pecado da origem advindos de um ato sexual. São dois pecados num mesmo delito: o sexo. Só o batismo livra dessa origem da luxúria. Eu assisti a muitos batismos e não entendia o palavreado do padre. Só mais tarde soube que este era o primeiro sacramento: através do batismo apagava-se o pecado original, cometido pelos pais, e só quem o recebia merecia o nome de cristão. Os clérigos também inventaram sete pecados capitais ou vícios de conduta. Cito a luxúria, o pecado de quem se rende ao domínio das paixões e o apego aos prazeres carnais e sensuais. E quem nunca???? João Ubaldo Ribeiro, na obra A casa dos budas ditosos, deu esse tema-pecado ao livro numa bem humorada história da transgressão feminina.

Foto: arquivo pessoal

Bueno, somos todas pecadoras. E os pecados dos homens? Não são os da carne, como sabemos. A eles, o direito às luxúrias; a elas, a perdição e o castigo do inferno. Tenho ouvido que, e ainda hoje, em certos cultos, pregam que mulheres que desobedeçam a seus maridos ou os denunciem por violências são pecadoras. A obediência ao pátrio poder se reproduz, infelizmente, e eu desando em círculos com esses discursos misóginos.

A professora Salma Ferraz, estudiosa da bíblia  e de seus malefícios e ofícios, o que diria sobre o pecado? Numa bela dedicatória a um amigo, o faz “para o empoderamento de todas as mulheres, para todas aquelas que foram discriminadas por serem mulheres, todas as que tiveram vergonha do seu sexo, vergonha de chamá-lo pelo seu nome, sem adjetivos infantilizantes e ridículos”.

Sim, a bíblia é também um tratado erótico e “vulvolucionário”, Salma.

Perguntei a minha mãe o que ela entende por pecado. Ela pensou, e disse: “Pecado é falar mal dos outros, não ajudar a quem precisa, desejar o mal dos outros e ter preguiça”. Ela se livrou dos dogmas religiosos, mas a preguiça faz parte da cultura do trabalho que sempre a moveu. Não tem problema, mãezinha, a gente entende!

Pecado, substantivo masculino: no dicionário lemos que pecar é violar um preceito religioso e não obedecer a Deus. Os pecados que ignoram a fome, a doença, a pandemia, quem os comete? E os pecados do ódio, do uso de armas, das ameaças ideológicas, das violências contra mulheres e crianças? Acaso não é pecado maltratar um próximo, seja ele índio, analfabeto, imigrante, negro, pobre, gordo, cadeirante, homoafetivo?

A desobediência à Constituição brasileira, especialmente no Artigo 3º: “Construir uma sociedade livre, justa e solidária;  garantir o desenvolvimento nacional;  erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” constitui-se em hediondo pecado.

Pasmem: pecam em nome de um “deus acima de todos”. Falar deste deus e desamparar seus próximos vai contra os princípios mais caros do cristianismo: o valor da fraternidade, da solidariedade, do respeito, da humanidade, do amor e da justiça social. Isso sim é pecado.

Minha mãe, com sua simplicidade, resume este artigo na linguagem de uma camponesa.  Penso que pecado é qualquer coisa que se faça ou diga que diminua ou machuque as outras pessoas. Ponto. Sexo jamais foi pecado!

No poema em um minuto, dia desses, escrevi:

O que me falta agora?
…um poema rasgado
num delírio suado,
daqueles que faz a gente
cair do andaime de
tanto pecado…

Oh, cigana das Tangueiras, fale com santa Rosália, a que apadroa os desvalidos das pestes, e diga que chega, já nos amoitou o suficiente: queremos voltar a abraçar, amar, sexuar, lamber, dançar, beijar e sermos felizes!

Marlene de Fáveri, 02 de agosto de 2020. Turvo/SC.

 

 

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    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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