Domingo, vinte e seis de julho de dois mil e vinte. Nesta semana os dias pareceram mais longos, mas é porque acordei mais cedo do que de costume. Nas manhãs, como o clima ficou ameno e a terra enxugou com o sol, calcei as botas e me exercitei pelas cercanias da casa: sempre tem o que fazer numa casa camponesa. Ervas daninhas crescem mais que as verduras e me dão trabalho. Plantei mais cinquenta pés de alface e tive que cobrir os repolhos com tela porque Arancuãs os bicaram, os danados. Eles vêm de madrugada e não os vejo; se os visse comeria seus fígados.

Também semeei rúculas e cobri com tela porque os gatos teimam em se aliviar fazendo buracos na terra fofa onde estão as sementes. Às tardes, dediquei mais à minha mãe e a alguns afazeres como costurar e outras tarefas cotidianas. Já nas noites, no silêncio que só é cortado por uns latidos e folias do Guevara e Tchê e alguns gorjeios, li, escrevi e preparei falas para lives.

Não fosse a apreensão com as notícias diárias sobre o vírus medonho, seria a paz nesta clausura. Hoje são quase 100 confirmados de Covid-19 aqui em Turvo, Santa Catarina. Fico apreensiva, e redobro cuidados com minha mãe e comigo. Para um município de treze mil habitantes é muito preocupante.   Mesmo com esse perigo, existem incautos que seguem o cloroquinado mandante, se pensam imunes e não usam máscaras. Aliás, estamos sob um aparvalhado governo a conspurcar a pátria. Vergonha é o que sinto.

Dei-me conta que esta é a crônica de número vinte! Em cento e trinta dias na clausura, percebo que escrevi compulsivamente. Dia desses minha mãe perguntou: “O que tu escreves tanto assim? Vai dormir que já é tarde!” Sei que é preocupação comigo e com minha saúde. Disse-lhe que estou acostumada e que fiz todos os meus estudos virando madrugadas. Não sei se ela entendeu, mas voltou para o quarto e dormiu de novo.

No dia seguinte, ela repetiu a pergunta do que tanto eu escrevia. Lembrei-a das crônicas que são publicadas nos domingos, que sempre mostro e leio para ela.  “Ah, sim, é verdade”, disse ela, “tu lês bastante e sabes escrever bem bonito. Já eu sei ler um pouco, leio as folhinhas do calendário (aqueles religiosos) e sei escrever mal e mal… Mas eu queria ter estudado mais e não me deixaram, tinha que trabalhar na roça”. Mas sei que treinava a escrita, tanto que quando saí de casa, no início dos anos oitenta, a comunicação com minha mãe era feita por cartas. Tenho uma coleção delas nos meus guardados – as que lhe enviei queimaram no incêndio de sua casa, o que lastimo muito. Algumas vezes as folheio e tento ler mas minha garganta fecha e as lágrimas descem… então as guardo.

Foto: arquivo pessoal

As mulheres do interior da geração de minha mãe não estudaram, ou só o suficiente para fazer contas simples, assinar o nome e escrever o básico necessário ao cotidiano. Minha avó frequentara a escola por alguns meses, e depois aprendeu a ler e contar de forma autodidata de modo que também ensinou o abecedário aos filhos e filhas. Fico imaginando minha nona Henriqueta, isso há mais de setenta anos, ensinando as letras e o juntar delas formando sílabas! “Às vezes era na mesa da cozinha, mas mais no fogão de lenha, eu sentava ali e ela ia dizendo as coisas enquanto fazia comida”, recordou minha mãe.

Ela se ressente por não ter podido estudar e fez questão que nós, seus filhos e filhas, estudássemos. Quando aprendi a ler, catava o que estivesse a meu alcance e, lendo, também escrevia. Juntar palavras e formar frases me fascinava. Até meus dez anos não tínhamos eletricidade em casa, eu lia à luz de lamparinas alimentadas a querosene. Li a obras de Jorge Amado assim, tapando a fresta da porta com um pano para não ser descoberta: a noite era para dormir e não gastar tanto líquido inflamável e caro.

Perguntei a minha mãe se seus irmãos e irmãs estudaram, e sua memória buscou imagens de longe: “Pois é, uma irmã eles deixaram ir estudar, ela formou-se professora, e três irmãos foram para o seminário para serem padres e duas irmãs foram para um convento e são freiras”. Dentre doze irmãos, só estes tiveram oportunidade de estudar. Era distintivo para as famílias camponesas, em geral numerosas, enviarem filhos e filhas para seguirem a carreira religiosa. Além da distinção, era também uma estratégia para que pudessem estudar. As famílias de origem italiana sabem do que falo.

Para os homens, era possível deixar a vida religiosa para seguir outra profissão, casarem e formarem famílias. Foi o caso de meus tios. Já no convento, as mulheres recebiam uma educação rígida, fundamentada na obediência, abnegação e caridade; renegar a missão religiosa e o celibato consistiria num pecado. Soube, bem mais tarde, que uma delas, se pudesse escolher, teria outro destino, mas era tarde… Lembro de uma ocasião, era um almoço que comemorava a visitas das tias freiras, quando uma delas olhou-me e disse: “A Marlene eu vou levar comigo para ser freira!” Minha mãe a olhou atravessado e eu… bem, se a tia esperava que eu tivesse um delírio cristão de moça bem comportada, eu disse “Não vou!”. E não fui.

Eu escapei dessa sina das mulheres do interior das quais se esperava que fossem parideiras e trabalhassem muito para o marido ter posses e que, na maioria das vezes, não as valorizava e muitos até as maltratavam. Ou que fossem freiras.

Estudos era para os homens e, mesmo assim, não para todos. Deles também se esperava que ajudassem os pais na lavoura e depois se casassem com uma mulher dentro da mesma etnia e formassem suas próprias famílias. Tive muitos pretendentes na adolescência, mas os espantava porque não queria o destino das mulheres que eu conhecia.

Eu pude estudar! Isso significou muito para minha mãe e fui a primeira de seus filhos a ir para a capital para fazer um curso superior. Eu pude fazer escolhas e, como já tenho dito, devo a minha mãe e ao seu incentivo. Nos anos oitenta eu estava na faculdade e com os novos conceitos apreendidos, escrevia meus dilemas e minhas buscas. Num texto que me enternece, escrevi:

Queriam-me mulher comum
Donzela entre suspiros a
Cozer o enxoval,
Virgem e prendada.
Idealizaram-se ante um
Corpulento vigário,
Repetindo decorebas e
Prometendo submissão:
Flores de laranjeira
E até que a morte os separe!
Ah, queriam-me abrindo as
Pernas de quando em vez
E prenha de vez em quando,
Sorriso amarelo sempre.
Moldaram-me fábrica
De homens viris, castrada
Do prazer e das vontades
Da voz e da opinião:
Objeto direto do verbo calar.
Porém, desaprendi os dogmas
E busquei minhas verdades,
Rompi as amarras das leis
Feitas por espúrios medievais:
Descobri-me mulher
Com direitos.
Despi os preconceitos
E me achei – identidade MULHER!

Escrevo desde sempre porque juntar palavras e dar sentido aos verbos é visceral. Busquei a liberdade de criar e desde que lembro que existo, livros e cadernos fazem-me companhia. Um papel em branco me detém e é sempre um desafio. Como tenho dito em outras crônicas, tenho esses guardados em poemas e contos.

O que eu não imaginava era que iria tão longe para uma garota camponesa! Fui em busca do que entendia ser a liberdade: conhecer mais coisas e lugares, e escrever. Eu não sabia nada ainda do que viria a ser o Feminismo, mas escrevia as ânsias do meu jeito.

A cada conquista, dedicava à minha mãe. A cada formatura, estava ela lá, na primeira fila, orgulhosa. Lembro-me da banca de defesa de meu Mestrado: veio do interior, de ônibus, combinado que encontraria minha irmã e ambas iriam até a UFSC.

Aconteceu que comecei minha apresentação e elas não estavam.  Fiquei aflita. Uns dez minutos depois minha mãe apareceu na porta dos fundos do auditório do CFH: suspirei, interrompi a apresentação, fui recebê-la e a conduzi a um lugar confortável. Nossa, ainda me arrepia: quebrei o protocolo, mas na hora nem pensei nisso. Depois eu soube: no ônibus ela tinha desfiado a meia fina e quis trocar – foram comprar outra que calçou na loja. Por isso atrasaram. Não é para amar? A ocasião era solene e ela não podia aparecer com uma meia desfiada. Hoje, lembrando do ocorrido, meus olhos ainda marejam e o que sinto é amor!

Foto: arquivo pessoal

Depois, a cada livro que eu publicava, ela me abraçava e parabenizava. A cada viagem a trabalho, ela me desejava sucesso. A cada enfrentamento, ela me acalentava e dizia que “tudo passa”. Tudo passou e em tudo compreendo mais minha mãe.  No dia vinte e quatro de janeiro deste ano, estávamos na sala de sua casa. Anoitecia. Olhei os e-mails pelo celular: “Mãe, saiu minha portaria da aposentadoria!!”, gritei. Ela estava na poltrona e se levantou, nos abraçamos e pulamos juntas. Então ela disse: “Agora somos duas aposentadas! Tu mereces!!”. Choramos juntas.

Poderia falar mil coisas desse momento. Lembro-me da frase de Pablo Neruda, e também “confesso que vivi”. Mas estou num recomeço de outras coisas que sempre desejei: abrir as caixas de papéis e reavivar memórias. A pandemia, se está atrasando o projeto do livro sobre Feminismo e Poesia, pôs-me tremores uterinos e uma inquietude a borbulhar em palavras. Então as deposito nestas crônicas sobre o que me passa, o que se passa, ou o que passa e parece que não passa. Sei que há saudades e vontades de tudo nestas confusões de medo, tempo ázimo e descompassos. Mas também há outras possíveis liberdades. Então, embrenhei-me em fazer o que mais me apraz: escrever.

A amiga e atriz Valeria Oliveira, de Itajaí, fez-me um convite: uma curadoria e um trabalho com meus poemas; obrigada, fiquei feliz! E os tantos pedidos para publicar estas crônicas em um livro o transformaram num outro projeto: vocês que me leem, merecem. Vamos em frente! Contar histórias entrelaçadas a poemas faz com que eu volte a eles e aos seus sentidos quando de sua tessitura. Olho-me mais e me sinto uma mulher realizada: agora posso falar. É turbulenta a luta por liberdade. Mas pode ser tão bela! As mulheres de minha geração sabem do que falo.

Oh, vida, não me espere; eu te alcanço!

Marlene de Fáveri, 26 de julho de 2020. Turvo, SC.

Marlene de Fáveri

Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC. Membro do Laboratório de Relações de Gênero e Família (LABGEF), do Instituto de Estudos de Gênero (IEG), do GTGênero (ANPUH Brasil) e da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil (AJEB). Autora de artigos, capítulos de livros e artigos de História, Gênero, Feminismo, Divórcio, Mercado do Sexo, Mídias. Foi processada em 2016 por ex aluna no teor da ‘escola da mordaça”, vencedora no processo. É feminista, poetisa, escritora e militante pelos Direitos Humanos e cidadania, com foco nos direitos das mulheres. Participa do Grupo de Poetas e Escritores Mario Quintana, fundado em Itajaí em 1988, com publicações em coletâneas e diversas premiações, como para o Off Flip 3023. É colunista no Portal Catarinas - jornalismo com perspectiva de Gênero. Em 2021, publicou dois (02) volumes de Crônicas da incontingência da clausura – cotidianos da pandemia (Letras Contemporâneas) uma série de 54 crônicas escritas no calor dos acontecimentos da pandemia, com foco no feminismo e nas fissuras de viver num tempo pandêmico. Em 2022, escreveu e organizou o livro O Ultrarrealismo na cena literária de Itajaí (Traços & Capturas), e o livro de poesias feministas: Se pulsa, arde e resiste (Infinitta Leitura).

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