Quarta feira, 25 de março de dois mil e vinte. Enclausuradas em casa, eu e minha mãe seguimos as ordens expressas do confinamento imperioso. Aqui, no sul de Santa Catarina, estes dias últimos têm sido de clima ameno; sorte, pois assim nossas varizes acalmam. Hoje faz doze dias que saí de minha casa para visitar minha mãe e fui impedida de voltar por conta do isolamento social; parecem meses, dados os tantos e diversos sentidos que reviraram e reviram nosso cotidiano.

Nossos medos se resumem, hoje, nas estatísticas em nível global, nacional e estadual dos números que alarmam qualquer vivente. E, todos os dias sabemos que mais municípios entraram na lista de pessoas acometidas da virulência nefasta; Turvo não está entre eles; suspiramos aliviadas, por enquanto.

É que nesses últimos dias, o mundo virou de ponta cabeça: o planeta atacado por um habitante invisível que, virulento e cáustico, se reproduz em exponencial geometria ao sabor de abraços e afagos; mas é real; e tem poder letal.

Dizem que é democrático e não distingue classes sociais; desconfiemos, pois como em todo ataque, há quem pode se proteger, mas a maior parte dos humanos perece na acidez de estratégias globais que defendem do liberalismo iníquo, pregando o Estado mínimo à custa do sangue de trabalhadores e trabalhadoras, sua saúde, seus afetos e seus sonhos.

Minha mãe acorda cedo e, como faz desde menina, primeiro solta as galinhas e as alimenta – ela as prende à noite para evitar que um gambá guloso ou um lagarto esfomeado invada o galinheiro. Já aconteceram massacres de penosas de dar dó do seu olhar nevoado ao contar que perdeu uma ou duas ou várias naquela noite. Então ela vai para a cozinha e, enquanto prepara um café, ouve as notícias. Eu acordo às oito horas – com despertador, por que é hora de seu primeiro remédio do dia para controle do Parkinson, e preciso estar junto para que não esqueça ou se atrapalhe com a tabela e horários rígidos e pílulas de nomes complicados; assim, ela quase não treme. Dispensamos a acompanhante nestes dias que viraram semanas e que se alargam, para o cuidado dela e nosso, e até quando não sabemos; ninguém sabe.

Foto: arquivo pessoal

Hoje ela estava mais assustada. Logo que acordei me contou dos números de infectados e óbitos pelo mundo; que aqui perto, em Criciúma, já tem doentes; que não disseram nada de Turvo, mas que tem medo. E me contou da fala do presidente que pessoas velhas como ela “não precisam viver”, e assim me passou suas representações de um discurso peçonhento, gerontocida.

À mesa, vendo sua aflição, minimizei e disse a ela que vai viver bastante, que sossegue…  E, como ela tem me dito por esses dias, se condói das tantas pessoas que não têm casa para ficar resguardadas e não pegar a doença, não têm álcool em gel, não têm comida, não têm remédio, não podem ir ao trabalho, não têm emprego, não têm para onde correr e por isso sofrem mais. Eu concordo, também sinto, como ela. Então falamos das parturientes, das pessoas em asilos, das crianças, das mulheres e das violências que têm aumentado dentro das casas com a quarentena. Sentimos, juntas.

Logo depois ela lembra da neta. Diz que está com saudades e me pergunta: “Quando é que a Laura vem? Quero dar um abraço, sinto falta dela”. Então eu explico de novo da contingência, e da incontingência da realidade, de que agora não pode, que tem que esperar para se proteger, que vamos vê-la pelo celular, que ela está bem, que não vai demorar… ela entende, mas não muito.  A menina, nos seus oito anos, tem lhe enfeitado a vida – ela a ensina a plantar folhagens e alfaces, pregar botões, colher ovos, admirar as flores, e estimula que estude – “Estude, Laura, porque uma mulher precisa estudar para ser independente”.

Foi assim comigo: me ensinou coisas das miudezas do cotidiano, e as grandes, como o sentido da liberdade. Hoje, não ultrapassar o portão que dá para a rua é também perder uma parte importante da liberdade, e isso nos afeta; me afeta.

Nesses últimos dias, precisei aprender a lidar com outras formas nos afetos, com outras palavras, outros sentidos. Explicar dezenas de vezes para minha mãe porque não devo levá-la para “fazer as coisas na praça” e que sair de casa só em extrema urgência; que não precisamos comprar comida, pois temos o suficiente para nós duas por um bom tempo, e os mercados não fecham; que os remédios não vão lhe faltar, pois as farmácias estão abertas; que logo vamos ter muitos abraços e que os outros filhos e filhas e suas famílias voltarão a visitá-la em breve; que vamos continuar guardando cascas de ovos para encher de amendoins mesmo que a Páscoa desse ano não seja na data do calendário, tem sido um exercício de paciência, respeito, compreensão, resiliência, ouvidos atentos. E aprendizados.

Foto: arquivo pessoal

Nesses dias tenho compreendido melhor minha mãe, seu medo da escassez e do possível desabastecimento – ela, que desde que nasci, assegurou a vida de seis rebentos, desdobrando-se em muitas para prover que tivéssemos alimento, uniformes, cadernos, abrigo, saúde. Entendo suas preocupações; ela era de aço!

Hoje cedo meu irmão lamentou pelo não abraço costumeiro em nossa mãe, e de como “está difícil ficar longe do calor humano que a gente tem nas relações, nas amizades, no trabalho”, bem como lidar com pessoas impertinentes que debocham do seu cuidado, mantendo-se à distância dos clientes da oficina que não acreditam na moléstia, ainda mais depois do pronunciamento genocida e irresponsável em rede nacional.

Mas o mais difícil está sendo manter o distanciamento entre nós, irmãos, irmã, sobrinhos, sobrinhas, cunhadas, cunhado. Acostumados, e acostumada, a trocar longos abraços, a nos reunir nos almoços em família aos domingos quando todos falam ao mesmo tempo, e, inevitavelmente, compartilhando gotículas de saliva, estamos nos sentindo em regime de separação forçada. Tive, e tenho a sorte de ter uma família afetuosa, evidentemente fruto de uma educação para a paz que minha mãe sempre primou.

Por isso somos assim, feito gatos que se enroscam com ternura. Mesmo nas horas mais aflitas por infortúnios; na imprescindível dupla e tripla jornadas de trabalho; nos trocos contados e economizados para as urgências necessárias; na solidão da não parceria com meu pai que pouco se interessava com as urgências do cotidiano, ela sempre dizia que “tudo passa”. Hoje ela disse que “isso vai passar”, me olhando fundo como se lesse a aflição em minha tez; “o corona vai passar, filha, tudo passa”. Ela me contou que ouviu de um parvo colunista que pelo menos uma pessoa de cada família não sobreviverá à tempestade viral. “Não, né! Não pode ser!”, retrucou com paúra; eu digo que não vai acontecer, que nossa família é pequena e todos estão se cuidando de maneira correta. Espero que não, mãezinha, que nenhuma de nós se perca da outra, e ninguém da família se perca de nós.

Nestes dias tenho ficado em estado de alerta máximo para evitar que ela receba o vendedor de vassouras; convide a vizinha para um café; entregue dinheiro e pegue o recibo do cobrador de uma ação social que paga mensalmente; e de outros desavisados que aparecem, com quem sempre conversa, serve água, mostra o jardim, as galinhas, assim, no costume de uma camponesa.

Ela entende que não pode, mas pouco. Eu a levo para os arredores e colhemos limões, goiabas, caquis; vamos sem pressa, e lá no meio pergunto coisas do passado, e me surpreendo ainda com acontecimentos e sentimentos que eu não sabia de sua vida… Essa companhia, agora preenchida de outros sentidos e afetos que fomos construindo ao longo de nossas vidas, me faz remexer bainhas do passado; desde que saí de casa para estudar, é a primeira vez que ficamos tanto tempo tão juntas. Paradoxalmente, na contingência do espectro da chegada de uma peste viral, temos vivido outras percepções para o desconhecido. Ouvimos do governador que “precisamos aprender a conviver com o vírus”: ela gravou a frase e, vira e mexe, retoma os sentidos receosos e do medo.

Foto: arquivo pessoal

Tenho feito coisas para distraí-la, e me aprazer de sua companhia: capinamos o quintal, fizemos canteiros, plantamos verduras e legumes, semeamos rabanetes, reorganizamos metade da quase centena de vasos, potes, latas e vasilhas descartadas que viraram lugar de mudas de folhagens. Fazia décadas que eu não manuseava a enxada, o machado, restele, facão, tesoura para podar. Revirar o solo me está sendo a redescoberta do prazer de mexer na terra; separo pedras, estas de rio que têm muitas enterradas na superfície, e me vem à memória sensível que sempre amei pedras – quando menina, construía casinhas perfilando pedras, ou sassos, como se dizia. Também tenho costurado, feito consertos domésticos, bem como todas as tarefas para manter tudo em ordem, o que significa cozinhar, lavar, limpar, varrer, coisas do cotidiano de uma casa posta em funcionamento.

Tenho plena consciência deste lugar de privilégio: poder estar com minha mãe, cuidá-la, impedir que o vírus chegue até ela, numa casa simples e ampla, cercada de arvores e flores plantadas por suas mãos, na companhia de dois gatos, ouvindo grilos à noite e pássaros pela manhã é um privilégio em tempos de tormenta. Ter alimentos, remédios, água, luz, álcool em gel, camas confortáveis, um computador, aconchego e até o luxo de um ar condicionado, é uma benesse. Ter um salário fixo que nos assegura o bem estar em tempos ameaçadores, é um direito no exercício da cidadania.

Volto às sensíveis preocupações de minha mãe, e sinto como ela o desconsolo de saber das dificuldades da grande maioria das pessoas deste país, e dos outros tantos, que dormem amontoadas em quartos minúsculos, ou nas sarjetas, mostrando nas suas faces a fome que medra, mais vulneráveis e sofredoras com o descaso de desgovernos rebotalhos do fascismo que não asseguram políticas públicas e sociais que resguardem os direitos humanos e, dentre eles, o de se manter vivo, viva; então imaginar esses sofrimentos  em tempos tempestuosos da pandemia, nos comove.

Vivemos tempos de necropolítica, ou da política centrada na produção da morte em larga escala; alguns mandatários e empresários determinam quais pessoas devem morrer, quem pode viver.  Nesse caos de uma peste invisível, fica ainda mais visível quem terá direito à vida.

As mulheres sabemos, são sempre as mais afetadas em tempos de crise e doença. Sentimos, eu e minha mãe, o calafrio das mulheres que são violentadas física, sexual, psicológica, racial e patrimonial cotidianamente.

Mais ainda nestes tempos de isolamento  por conta da pandemia, quando têm que dar conta de si e de seus filhos e filhas, mães, pais, avós, avôs na tarefa diária para assegurar suas vidas. Pior, ouvindo insistentemente nas diversas mídias receituários e protocolos de como se isolar; do que fazer nessa quarentena; de como se alimentar para adquirir imunidade; de onde pedir comida por telefone; de que é imperativo usar álcool em gel sob o risco da infecção; de como evitar qualquer contato físico ou compartilhar objetos; de como se exercitar e manter o corpo em forma; de como cuidar das crianças e dar aulas em casa; de sugestões de leituras e filmes para passar o tempo… quanta miséria moral carregamos!

A cada noticiário, ouvimos que “o pico será em um mês”, e virão meses de penúria, fome, mortes não veladas, corpos descartados; virão tempos mais áridos para as mulheres que, como sabemos pelas estatísticas de ontem e hoje, a violência doméstica tem aumentado em até 50% o durante o confinamento, sem falar da violência sexual, e outras da ordem do machismo estrutural e do capitalismo farsesco.

Ouvimos em rede nacional, pronunciamentos que beiram ao escárnio de um asfixiante desgoverno que de tão inábil, incompetente, machista e sórdido só falta fazer polichinelos em cena pública para demonstrar sua saúde de “atleta” e por isso “não pega”; que há uma “histeria da imprensa” e dos governos estaduais com suas medidas drásticas de contenção da disseminação do vírus; que “vão morrer pessoas” e isso é “normal”; que é “só uma gripezinha” sem maiores complicações; que o estado de calamidade no país berço do Renascimento se dá porque “lá tem muitos velhos”; que primeiro salvar a economia; depois a vida. Surreal, beirando a distopia, não fosse verdade e real. É genocida. É a necropolítica na sua mais potente versão. Ouvi ontem uma reflexão sobre a perversa atitude de quem “prefere contar os mortos a contar desempregados”.

Palacianos, em seu “berço esplêndido”, dementes e manipulados pelo capitalismo selvagem e feroz desprezam as misérias dos humanos, os seus dilemas, sua fome e falta de tudo que lhes dê o direito à dignidade. Mortais, como todas as pessoas, por certo alguns não serão poupados, mas mesmo assim vociferam contra o Sistema Único de Saúde. Também não terão flores e não serão pranteados porque seus entes fugirão de seus corpos fétidos infectados, mas mesmo assim se assoberbam da ganância do poder. Miseráveis na morte, irão suas carnes para as mesmas covas coletivas e jogados como as pessoas negras, as pobres, as exploradas, as sem teto e sem abrigo. Aí, sim, o vírus é democrático. Às pessoas afetuosas, respeitosas, dignas, cientes de sua responsabilidade perante a vida, livres de preconceitos; àquelas generosas e solidárias, os afetos serão mais fortes e mais sólidos depois desta tempestade. Às outras, a memória registrará suas maldades, até o limbo completo.

Minha mãe dorme. Depois de um dia cheio das lides da ordem dos dias de clausura, mudo para o lado de fora da casa, numa área aberta, ouvindo grilos e cães por aí na vizinhança, e me toco a escrever. Assim tenho revirado meus sentidos nesses dias e semanas; porém, na incontingente realidade de que somos mortais. Ainda reféns dos caprichos de um verme inapto; todavia, vivas, e vivos, para as lutas e ações na defesa dos direitos inalienáveis e democráticos. Por hora, na contingência das panelas que surdam a quem ainda se arvora na defesa do indefensável. Mudaremos as relações, nos somaremos para a reciprocidade e a experiência de uma sociedade que socialize bens; os afetos serão mais ternos e a experiência e convivência humana terão que se adaptar, ou estarão fadadas à extinção. Como não há maldição que dure para sempre, temos esperanças, mãezinha!

Marlene de Fáveri, Turvo, SC. 25 de março de 2020.

 

 

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    Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC....

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