Criminalizar ou não, eis a questão
Sobre a necessidade do reconhecimento público de certas violências e o caminho da resposta penal
Nomear determinados atos violentos muitas vezes é condição indispensável para que sejam socialmente admitidos como violência, especialmente aqueles que atingem parcelas da população historicamente oprimidas como mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+. É preciso dar nome, reafirmar a existência e formalizar a nomeação para que a prática não seja naturalizada, invisibilizada.
Porém, se observarmos os caminhos que temos percorrido em busca de soluções, podemos perceber a repetição de movimentos em direção a um mesmo destino: o da resposta pronta, sempre disponível, como uma fórmula mágica capaz de extirpar todo mal, a criminalização.
Será que, mais uma vez, essa é a melhor saída que podemos encontrar? Quantos tipos penais existem no Brasil? Especificamente em relação às mulheres, o quanto essas letras no papel realmente evitam que passemos por situações de violência e misoginia? E o quanto essa crença na criminalização obstaculiza a busca de outras abordagens, outras formas de tratar o problema?
Desconsiderar o histórico do sistema punitivo como ferramenta de opressão e de controle social das mesmas mulheres que promete defender é um equívoco comum, que por alguma razão, seguimos cometendo. Alimentamos cada dia mais um mecanismo histórica e constantemente utilizado para aprisionar e docilizar corpos vulnerabilizados, que tem como tendência a punição frequente da mesma parcela da sociedade e o desdém contumaz com aquelas que precisam de proteção.
A justiça criminal é um sistema de controle formal desigual e seletivo, fantasiado de proposta válida para a resolução de conflitos, cujo objetivo principal não é promover a justiça esperada, mas dar seguimento ao controle informal exercido nas relações sociais e disseminado incessantemente a partir de crenças e estereótipos sexistas, racistas, classistas.
Ao contrário do que gostam de nos fazer pensar, o judiciário está muito longe de ser uma instituição imparcial e sem ideologias, pois é construído e operado por uma sociedade cujo viés predominante é patriarcal e capitalista, que prega a existência de uma dicotomia simplória entre “bem” e “mal” e que, a partir dessa divisão, seleciona ideologicamente quem deverá ser punido e quem passará incólume pelo sistema, da mesma forma que determina quem poderá figurar como vítima e quem não.
Como ensina Vera Regina Pereira de Andrade, “o sistema somos, informalmente, todos nós: em cada sujeito se desenha e opera, desde a infância, um microssistema de controle e um microssistema criminal (simbólico) que o reproduz, cotidianamente”.
O Direito Penal traz como função simbólica a proteção contra a violência e a criminalidade, para encobrir sua função instrumental de controlar pessoas, selecionadas com base em estigmas que reproduzem desigualdades de gênero, raça e classe, perpetuando as hierarquias sociais já existentes. Sabendo que somos alvo direto desse controle, o quão produtivo é muni-lo com mais criminalização?
Voltemos nossa atenção para a violência institucional diária a que mulheres são submetidas nas entranhas do Sistema de Justiça Criminal e nos perguntemos como a criação de mais um crime poderá trazer benefícios. Como essa lei será aplicada? Quais mulheres serão contempladas por ela e quais serão descredibilizadas e revitimizadas na primeira oportunidade? Com quem mulheres sem acesso à via penal poderão contar? Além de uma ameaça vazia de pena, quais providências concretas podem ser tomadas para combater violências cotidianamente reproduzidas no sistema jurídico e social?
A punição como única solução disponível faz perpetuar a desigualdade característica do sistema penal e não movimenta as estruturas necessárias para que grandes mudanças ocorram de fato. É preciso admitir a complexidade do problema e, por consequência, o tempo e o trabalho que precisam ser dispensados na construção de uma resposta que trate não só de punição e reparação individual, mas de responsabilização coletiva e transformação social.